Discussões sobre currículo são sempre complexas. Além de aspectos mais estritamente pedagógicos, elas embutem diferentes visões sobre o indivíduo que se quer formar e a sociedade que se quer construir. Educadores costumam qualificar o debate sobre currículos como “territórios de disputa” entre grupos com diferentes concepções de mundo.
Para não desprezar tal complexidade, este guia deve ser visto mais como um roteiro de informações e pontos de atenção para a cobertura jornalística sobre a BNCC (Base Nacional Comum Curricular).
O que é a BNCC? E ela é mesmo necessária?
O que deve ser aprendido, quando e para quê? Essas são as questões essenciais que a BNCC se propõe a responder. Ela será a referência nacional obrigatória para que estados e municípios elaborem os currículos da educação básica (ensino infantil, fundamental e médio) que terão de ser seguidos por escolas públicas e privadas.
A construção da BNCC, iniciada em 2014, é algo inédito no país. A base dos ensinos infantil e fundamental, cuja terceira versão será encaminhada pelo Ministério da Educação ao CNE (Conselho Nacional de Educação) na quinta-feira (dia 6), prevê conteúdos e aprendizados esperados para cada ano ou série dessas etapas de ensino.
Referências anteriores à base, documentos como as DNCs (Diretrizes Nacionais Curriculares), atualizadas no início desta década, ou os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), concebidos em meados dos anos 90, eram menos detalhados do que a BNCC se propõe a ser.
Elaboradas pelo CNE, as DNCs têm força de lei e caráter normativo, definindo, por exemplo, as áreas de conhecimento que devem integrar os currículos, além de regras para o funcionamento das escolas.
Os PCNs, produzidos por especialistas sob a coordenação do MEC, não têm caráter obrigatório – não foram homologados pelo CNE. Eles servem mais como uma referência pedagógica, fornecem indicações sobre quais conteúdos devem ser trabalhados nas áreas de conhecimento ou mesmo nas disciplinas. Mas não estabelecem, como a base, um roteiro do que deve ser trabalhado ano a ano.
Situar a BNCC no contexto histórico é importante para deixar claro que ela não surgiu do nada, é mais uma etapa na definição de padrões comuns aos currículos na educação básica. Mesmo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) de 1961 já atribuía o papel de zelar por algum grau de uniformidade nos currículos ao Conselho Federal de Educação, antecessor do CNE, determinando disciplinas obrigatórias – os Conselhos de Educação dos estados e as próprias escolas definiam as disciplinas optativas.
Na atualização da LDB, em 1971, essa questão foi expressa de forma bastante semelhante ao previsto agora com a base. “Os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos”, diz o texto.
De novo, a LDB atribuía ao Conselho Federal o papel de determinar as “matérias” do núcleo comum, “definindo-lhes os objetivos e a amplitude”. Aos conselhos dos estados cabia determinar um rol de matérias a ser considerado pela escola na montagem da parte diversificada do currículo. E a própria escola tinha liberdade para incluir outras matérias, com aprovação do conselho do seu estado.
O contexto histórico alimenta argumentos de críticos da base, que a consideram desnecessária. Para eles, já existem referências curriculares na educação brasileira e, ao descer a detalhes sobre o que deve ser ensinado e aprendido a cada ano de escolarização, a base interfere na autonomia do professor e conduz a uma indesejável homogeneização – algo que DNCs e PCNs, por seu caráter mais genérico, não fazem.
Defensores da BNCC, por sua vez, lembram que ela está prevista em marcos legais como a Constituição, a LDB de 1996 e o PNE (Plano Nacional de Educação).
Na LDB atual, essa questão está tratada no artigo 26, cuja redação atual foi dada pela Lei 12.796, de 2013: “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.”
Agrupados em frentes como o Movimento pela Base Nacional Comum, um grupo de mais de 60 especialistas apoiados pelo terceiro setor, educadores favoráveis à BNCC afirmam que sua construção atende a uma demanda dos próprios professores, que pressionam por uma definição clara do que se espera que eles ensinem – e os estudantes aprendam – em cada nível ou etapa do ensino básico.
Quanto ao risco de padronização, os defensores da BNCC lembram que ela não constitui um currículo. Este será definido por estados e municípios usando como referência o núcleo comum prescrito pela base, mas também terão uma parte diversificada, para atender a especificidades regionais e locais.
Educadores mais distantes dos polos desse debate admitem que a concepção de bases curriculares nacionais, por seu caráter detalhista, induz à confusão entre elas e os currículos. Mas uma distinção importante é a de que a base não indica “como” ensinar. É papel do currículo articular e mobilizar os conteúdos das disciplinas para atingir os objetivos prescritos pela BNCC.
Embora considere desejável a definição de objetivos de aprendizagem ano a ano, a professora da USP (Universidade de São Paulo) Elba Barretto, consultora da Fundação Carlos Chagas, teme que a “dosagem” da prescrição seja excessiva. Ela argumenta que o processo de aprendizagem é muito particular para cada aluno e muitas vezes não segue uma dinâmica linear.
A base não pode ser uma camisa de força, que imponha um mesmo ritmo a estudantes em estágios muitos distintos de formação. Se for muito detalhista, deixará pouca margem para o professor montar o conteúdo das aulas. E vai padronizar o que as crianças têm de aprender, desconsiderando a diversidade.
A articulação da BNCC com o sistema de avaliações em larga escala é outro foco de polêmica.
Dirigentes do MEC como o secretário de Educação Básica, Rossieli Soares, consideram que a definição clara de objetivos de aprendizagem vai facilitar o trabalho dos professores. E restabelecer a lógica de que documentos com referências curriculares pautem as avaliações e os livros didáticos.
Hoje tem ocorrido o inverso. Especialmente a partir do fundamental 2, os professores têm se orientado pelo que cai nas avaliações e pelos livros, ambos elaborados sem uma discussão mais profunda com a sociedade sobre o modelo de educação que se pretende adotar.
Para o ex-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Luiz Carlos de Freitas, porém, a definição de objetivos de aprendizagem na BNCC é feita sob medida para ampliar a cultura da avaliação.
No entender de Freitas, esse movimento reforça a visão de responsabilização do professor pelas deficiências da educação brasileira, ignorando variáveis-chave – como remuneração e condições de trabalho do professorado, falta de estrutura das escolas e baixo investimento – que deveriam estar no centro do debate.
Etapas da construção da BNCC
O processo de construção da Base Nacional começou em 2014, quando o MEC nomeou uma comissão de 116 especialistas para preparar a primeira versão. A conclusão do trabalho foi divulgada em setembro de 2015 e aberta para consulta pública na internet.
O portal da base recebeu mais de 12 milhões de contribuições. Com base nelas e em pareceres e leituras críticas de especialistas, o MEC coordenou a revisão da base.
A segunda versão foi apresentada em maio do ano passado e levou a uma nova rodada de consultas. Mais restrito, o debate se concentrou em seminários regionais organizados em julho e agosto pelo Consed (Conselho dos Secretários Estaduais de Educação) e pela Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), que tiveram pouco mais de 9 mil participantes.
O MEC recebeu em setembro o relatório com as recomendações apresentadas nos seminários. Segundo a secretária-executiva do ministério e presidente do Comitê Gestor da BNCC, Maria Helena Guimarães de Castro, as recomendações foram acatadas praticamente na íntegra na terceira versão. Além delas, o MEC também levou em conta sugestões de especialistas aos quais encomendou pareceres e leituras críticas da base, recebidos pelo ministério até fevereiro passado.
Uma diferença importante da terceira versão em relação às anteriores é que ela só trata dos ensinos infantil e fundamental. A base do ensino médio terá de ser revista em virtude da aprovação pelo Congresso, em fevereiro, do projeto de reforma dessa etapa da educação básica. A previsão é de que ela seja encaminhada ao CNE em 2018.
Aliás, a decisão do governo de fatiar a base é um dos aspectos que será questionado agora no CNE. Não há consenso a respeito. Um conselheiro que se manifestou contra o fatiamento foi César Callegari, que ocupa um cargo estratégico: preside a Comissão Bicameral da BNCC, da qual fazem parte 17 dos 24 conselheiros.
Cabe à comissão analisar o texto e preparar um parecer técnico que será submetido ao pleno do conselho. O CNE também pretende realizar cinco audiências públicas, uma em cada região do país, para ouvir opiniões de especialistas e de representantes de professores e sociedades científicas.
Segundo Callegari, o CNE planeja votar ainda este ano o parecer e um projeto de resolução com suas recomendações para a terceira versão. Depois disso, para se transformar em lei, a base ainda precisa ser homologada pelo ministro da Educação.
A homologação da base pode ser vista como o fim de um processo. Mas é um começo, porque o que conta de fato é a implementação da BNCC, um ciclo de trabalho longo e complexo. A primeira etapa é a reformulação dos currículos nos estados e municípios.
Polêmicas marcaram a 1ª versão
Feita a ressalva de que se tratava de um documento preliminar e inédito, a primeira versão da BNCC foi recebida com muitas reservas por especialistas.
Uma parte significativa das críticas dizia respeito à estrutura da base. Para alguns analistas, o documento era mais uma listagem de objetivos de aprendizagem (tópicos específicos que se espera que o aluno aprenda/que a escola ensine), sem coesão interna nem articulação desses objetivos com as áreas de conhecimento (Linguagem, Matemática, Ciências, etc) e com as disciplinas – ou componentes curriculares, no caso do ensino infantil e do fundamental 1.
Autores de leituras críticas da BNCC divulgadas pelo Movimento pela Base Nacional Comum afirmaram que não havia um tratamento uniforme de termos e conceitos. Em algumas passagens, por exemplo, o texto descrevia atividades que deveriam ser desenvolvidas em sala de aula como objetivos de aprendizagem.
Eles também questionaram a hierarquia da base, em que se sucediam áreas do conhecimento, disciplinas e, por último, etapas de ensino. Para os críticos, com isso a base deixava de considerar uma visão mais abrangente do processo de aprendizagem, que partisse das especificidades do ensino infantil, fundamental e médio.
Outra ressalva estava relacionada à pouca clareza sobre a progressão, o avanço esperado dos estudantes de ano para ano. Em muitos casos, os objetivos de aprendizagem eram muito parecidos ou tinham sido simplesmente repetidos.
Houve polêmicas acirradas em relação às aprendizagens prescritas em algumas disciplinas. Isso ocorreu com a BNCC de História, que privilegiou a História do Brasil, da África e dos povos indígenas, colocando em segundo plano a Antiguidade e a Idade Média e, em sentido mais amplo, a formação e evolução da civilização ocidental. Os argumentos contrários foram rejeitados pelos responsáveis pela BNCC de História como reflexos de uma visão “eurocêntrica” da História.
Em Língua Portuguesa, a base deu pouco peso à Gramática, na avaliação de Anna Helena Altenfelder, superintendente do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária). O texto deixava claro que aspectos formais da Gramática deveriam estar a serviço da compreensão e produção oral e escrita, sem caracterizar um eixo autônomo de conhecimento.
Avanços na 2ª versão
De modo geral, especialistas consideraram a segunda versão da BNCC mais adequada do que a primeira. Eles identificaram avanços na estruturação dos objetivos de aprendizagem por áreas do conhecimento e afirmaram que o texto introdutório explicava melhor a concepção de trabalho escolhida para cada disciplina.
Na questão da hierarquia a BNCC recebeu elogios por usar como ponto de partida as etapas de ensino, às quais ficaram subordinadas as áreas de conhecimento e, na sequência, as disciplinas ou componentes curriculares.
Ainda no capítulo das etapas da educação básica, a segunda versão adotou uma concepção mais atualizada de educação infantil.
No primeiro documento, os objetivos de aprendizagem eram apresentados em bloco para a faixa de zero a 5 anos e 11 meses de idade.
A BNCC passou a adotar objetivos específicos para três categorias: bebês (zero a 11 meses), crianças bem pequenas (19 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses).
A educação infantil, aliás, é a etapa que tem a estrutura mais inovadora da BNCC. Ela não obedece a divisões mais tradicionais por áreas de conhecimento e componentes curriculares. Faz o cruzamento das áreas com os chamados “campos de experiência”, que incorporam dimensões como o brincar e o comunicar, consideradas indispensáveis à formação das crianças.
Mas ainda houve reparos à falta de coesão e de uniformidade no uso de termos (o MEC recebeu a sugestão de criar um glossário para defini-los com ar maior clareza). O texto introdutório, de quase cem páginas, foi considerado prolixo.
Outra crítica que também permaneceu da primeira para a segunda versão dizia respeito às baixas expectativas de progressão. Em disciplinas como Matemática e Língua Portuguesa, por exemplo, a base previa para o 5º e 6º anos do ensino fundamental objetivos de aprendizagem que em outros países eram esperadas para o 3º ou 4º ano.
Além disso, em alguns casos as expectativas se repetiam em diferentes anos, sem que ficasse explícita a diferenciação do grau de complexidade em cada momento.
Mesmo com essas ressalvas, os especialistas consideraram que a BNCC facilitou a percepção de como se dá a progressão. Em lugar de apenas listar objetivos de aprendizagem, o documento recorreu a tabelas para mostrar como eles devem evoluir de ano para ano.
Quanto às disciplinas, o capítulo de História passou por ajustes, com a reintrodução de elementos da História Clássica. No entanto, historiadores e professores advertiram que a mudança foi feita basicamente com o acréscimo de temas, o que tornou o programa de História muito extenso – dificultando o aprofundamento dos tópicos de estudo.
A crítica à falta de peso para Gramática no programa de Língua Portuguesa da primeira versão também foi atenuada. Ela passou a constituir o eixo de conhecimento da língua e da norma, um dos quatro em que foi estruturado o ensino da disciplina – os outros são leitura, escrita e oralidade.
Embora sem o destaque das polêmicas criadas pelos programas de História e Gramática na primeira versão, foram identificados problemas em outras áreas na revisão da base.
Segundo a diretora da Comunidade Educativa Cedac, Tereza Perez, a concepção de Ciências foi considerada ultrapassada por dar pouco destaque à tecnologia. Na Geografia, Geografia Física e Cartografia, considerados temas essenciais, ficaram em segundo plano.
O que se sabe sobre a 3ª versão
O MEC fez no fim de janeiro uma apresentação resumida da versão da base que será entregue ao CNE. Na questão da estrutura, a principal modificação é a organização da BNCC por competências, e não mais por direitos de aprendizagem.
A hierarquia da base foi revista. O ponto de partida passou a ser competências gerais, seguidas primeiro pelas etapas de ensino e depois, sucessivamente, por áreas do conhecimento (com suas competências específicas); por componentes curriculares/disciplinas (que também têm suas competências específicas); e por habilidades, usadas como sinônimo de objetivos de aprendizagem.
Em janeiro, o MEC fez uma apresentação resumida da terceira versão. Anunciou que a base teria três competências gerais: cognitivas, comunicativas, e pessoais ou sociais (também conhecidas como socioemocionais).
Isso, porém, já mudou, como revelou Maria Helena em webinário organizado pela Jeduca no último dia 7. Em lugar de três, a base passou a considerar dez competências gerais, tanto cognitivas quanto socioemocionais – no webinário, Maria Helena não precisou quais são essas competências gerais.
As críticas à falta de clareza de conceitos empregados na primeira e na segunda versões levou o MEC a recorrer na apresentação de janeiro à definição de competência que consta da LDB: “é a possibilidade de mobilizar e operar o conhecimento em situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões pertinentes”.
O ministério descreveu o desenvolvimento de competências como um processo que passa por três estágios: a aquisição do conhecimento; a habilidade necessária para aplicá-lo (na resolução de problemas ou tomada de decisões); e a atitude para refletir sobre o conhecimento e usar as habilidades de forma adequada.
O MEC também deu exemplos de competências específicas das áreas de conhecimento e de objetivos de aprendizagem.
Em Ciências, por exemplo, espera-se que o aluno tenha a competência de “agir pessoal e coletivamente com respeito, autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, recorrendo aos conhecimentos das Ciências Naturais para tomar decisões frente a questões científico-tecnológicas e socioambientais e a respeito da saúde individual e coletiva, com base em princípios éticos democráticos, sustentáveis e solidários”.
Já a definição de habilidade é bem pontual, como mostra este outro exemplo também tirado da área de Ciências: “Analisar e construir cadeias alimentares simples, reconhecendo o lugar ocupado e as relações estabelecidas entre os diferentes seres vivos.”
Além da definição de conceitos, uma inovação da terceira versão é a padronização da redação. Para facilitar a leitura e dar maior coesão à BNCC, as habilidades serão sempre descritas da mesma forma: um verbo, que define o processo cognitivo; um objeto (conteúdo); modificadores que especificam a aprendizagem esperada, seu contexto ou seu nível de complexidade.
Eis um exemplo dessa padronização: “Descrever (cognitivo), por meio da linguagem oral e/ou de desenhos (modificador), as posições do Sol observadas em diversos horários do dia (objetivo).”
No webinário da Jeduca, Maria Helena afirmou que a terceira edição está mais enxuta e clara. Uma das providências adotadas foi remeter referências à lei (dispositivos da Constituição, da LDB, do PNE e de legislações específicas, como o Marco Legal da Primeira Infância) a notas de rodapé. Outra, segundo interlocutores do MEC, foi a de limitar o texto introdutório a pouco mais de uma dezena de páginas.
Apesar desse enxugamento, houve áreas e componentes em que o número de habilidades/objetivos de aprendizagem aumentou. Isso ocorreu no ensino fundamental, por exemplo, com Língua Portuguesa – que ficou com 512 objetivos de aprendizagem, ante os pouco menos de 500 da segunda versão – e Ciências. Em disciplinas como Matemática e História, porém, houve redução.
O MEC produziu um anexo que vai discriminar ponto a ponto as mudanças em relação à segunda versão. O objetivo é dar maior transparência às modificações e facilitar as análises de educadores, formadores de opinião e também de jornalistas – neste último caso, a leitura do anexo é uma providência básica para orientar a cobertura.
Possíveis pontos de polêmica na 3ª versão
Alfabetização: pedagogos e especialistas se dividem em correntes, que privilegiam na alfabetização o uso de sons ou letras ou ainda a chamada dimensão discursiva – que, a grosso modo, propõe estruturar o aprendizado da linguagem e da escrita a partir do diálogo da criança com os outros.
Há quem defenda que a educação infantil é importante para o processo de alfabetização, outros alertam para o risco de submeter as crianças a uma escolarização precoce. Entre uma visão e outra há muitas nuances e pontos de vista apoiados em distintas fundamentações teóricas.
Cada corrente tem referências importantes, professores e especialistas de destaque, que serão mais ou menos críticos dependendo do encaminhamento que a nova versão da BNCC der à questão da alfabetização.
Risco de escolarização precoce na educação infantil: Depois da apresentação dos princípios gerais da terceira versão da BNCC em janeiro, especialistas que participaram da elaboração das versões anteriores organizaram um abaixo-assinado alertando para o risco de que o capítulo dessa etapa de ensino deixasse de lado o conceito dos campos de experiência em favor da escolarização precoce, dando ênfase à oralidade e à escrita.
No webinário da Jeduca, Maria Helena atribuiu essa preocupação a uma leitura equivocada da apresentação feita pelo MEC em janeiro. Ela afirmou que a BNCC manteve os cinco campos de experiência, que trabalham noções de identidade; escuta e fala; cores, sons e imagens; gestos e movimentos; além de noções de quantidade, medida, tempo e espaço. “Não há ênfase na oralidade e na escrita.”
Papel das competências socioemocionais: também chamadas de competências do século 21, elas são um conjunto de valores e atitudes que seus defensores consideram essenciais para a formação de crianças e jovens, além dos conteúdos cognitivos tradicionais.
Já houve várias tentativas de sistematizar esses valores e atitudes. Um marco nesse sentido foi um relatório da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) dos anos 90, que propunha um sistema de ensino amparado em quatro pilares, numa combinação de aspectos cognitivos e comportamentais: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a ser; aprender a conviver.
Outra classificação foi dada por pesquisadores americanos, composta por cinco dimensões: abertura a novas experiências; extroversão: amabilidade; consciência de si; e estabilidade emocional.
Mas há sérias restrições entre educadores ao papel que as socioemocionais devem ter em um documento como a BNCC. Não há consenso sobre os valores e atitudes que se deve privilegiar na formação e não há um entendimento claro sobre como isso deve ser trabalhado na escola – se é que deve ser trabalhado.
Para uma parcela significativa de educadores, a inclusão na base pode fazer com que as socioemocionais sejam objeto das avaliações de larga escala, o que eles consideram temerário: como avaliar num teste de múltipla escolha o desenvolvimento de traços de personalidade?
Na opinião da professora da Faculdade de Educação da USP Cláudia Valentina Assumpção Galian, o debate sobre as socioemocionais desconsidera o fato de que há outras instâncias da sociedade responsáveis pela transmissão de valores, como a família.
Elba Barretto, por sua vez, argumenta que a questão dos valores sempre permeou o trabalho da escola, em um tipo de aprendizado que passa muito pela interação dos estudantes com colegas, professores e outros integrantes da comunidade escolar.
Esse ponto é reforçado por Tereza Perez. Há de fato um incômodo entre especialistas e professores com o discurso de que as competências socioemocionais são uma grande novidade.
A própria Maria Helena revelou esse incômodo no webinário da Jeduca, dizendo que muitos questionamentos trazidos pelas socioemocionais já foram abordados na literatura sobre educação da primeira metade do século passado. Ela afirmou que sempre tratou o tema das socioemocionais com cautela.
Embora tenha defendido a inclusão na base de competências gerais, como a capacidade de trabalhar em equipe, respeitar a diversidade de opiniões ou conhecer o próprio corpo e cuidar de si, Maria Helena disse que elas não serão consideradas uma categoria à parte, dissociadas dos processos cognitivos tradicionais.
Direitos de aprendizagem versus competências: é um debate conceitual que pode ganhar força, embora a distinção entre um e outro varie de acordo com o interlocutor. Tradicionalmente a perspectiva de direitos é valorizada no CNE, amparada na definição da educação como direito social da Constituição e da LDB.
Um possível aspecto inicial dessa distinção é que a definição de direitos coloca a responsabilidade pelo processo de aprendizagem na escola: ela tem de se “desdobrar”, encontrar o jeito mais adequado para o aluno aprender. Por essa lógica, a visão de competência atribui a responsabilidade ao estudante.
Mas os dois pontos de vista não são necessariamente contraditórios. A mesma legislação que fala em direitos de aprendizagem define competências. Talvez a cisão esteja mais associada à maneira como a base será operacionalizada, ao grau de amarração que ela vai impor ao currículo.
Cláudia Galian chama a atenção para outro aspecto. Segundo ela, privilegiar a capacidade de mobilizar o conhecimento para a resolução de problemas e tomada de decisões deixa em segundo plano outra característica necessária à educação de qualidade, que é permitir ao indivíduo algum grau de distanciamento da realidade, para poder questioná-la.
No webinário da Jeduca, Maria Helena disse que, apesar da reestruturação, os direitos de aprendizagem continuarão mencionados nos capítulos gerais do texto. Ela defendeu a mudança alegando que os currículos estaduais e municipais já são organizados por competências, assim como avaliações nacionais e internacionais, como o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, na sigla em inglês).
Implementação
Depois da preocupação com a construção de consensos, a base vai enfrentar seu maior desafio, a implementação. Há muitas frentes a atacar para que ela promova as mudanças esperadas na melhoria da qualidade do ensino.
Um dos aspectos mais relevantes nesse processo de implementação é o da formação de professores, tanto inicial, quanto continuada. Há consenso de que os cursos de Pedagogia e as licenciaturas oferecidos no ensino superior têm qualidade questionável ou estão desatualizados.
Outra crítica – que não é tão consensual, embora apareça frequentemente no discurso de gestores dos sistemas de educação – é a de que os cursos dão ênfase exagerada à teoria, deixando em segundo plano aspectos da didática, da preparação do professor para encarar o cotidiano da sala de aula.
A ideia é que MEC e CNE trabalhem em conjunto para rever as normas de funcionamento desses cursos. No entanto, é preciso também pensar na formação continuada, nos cursos de capacitação para preparar professores que já estão na rede, o que vai exigir investimentos consideráveis.
A BNCC só vai sair de fato do papel se for apropriada pelos professores no chão da escola. Há consenso de que isso não ocorreu, por exemplo, com os PCNs. Embora o fato de eles não serem obrigatórios tenha contribuído para isso, também é verdade que os professores tiveram dificuldades (ou não receberam supervisão adequada) para incorporar as referências indicadas nos documentos no trabalho em sala de aula.
Falando em supervisão, ainda no capítulo dos investimentos, o MEC e os Conselhos Federal, Estaduais e Municipais de Educação vão precisar garantir suporte técnico para estados e, principalmente, municípios modificarem seus currículos e orientarem escolas na revisão dos seus projetos político-pedagógicos. Em muitos casos as prefeituras não têm pessoal qualificado para comandar esse processo.
A revisão de livros didáticos precisa ser acompanhada pelo MEC e negociada com as editoras. Maria Helena calculou no webinário da Jeduca que o prazo mínimo de atualização dos livros é de dois anos. Isso já está provocando ajustes no calendário de aquisições do MEC, que este ano, por exemplo, abriu licitação para o acervo do ensino médio.
Em princípio, o acervo deveria permanecer em uso no triênio 2018-2020, mas o governo quer reduzir esse prazo para dois anos. Negocia com as editoras a possibilidade de contar com livros revistos segundo as prescrições da BNCC já a partir de 2020.
A BNCC vai exigir também a revisão do que é cobrado nas avaliações federais, estaduais e municipais. A matriz da Prova Brasil, por exemplo, não é modificada desde 2001 – foi montada com base nos currículos estaduais e não incorporou nem mesmo as modificações realizadas nas Diretrizes Nacionais Curriculares naquela década.
No caso do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), a última modificação ocorreu em 2009, quando ele começou a se transformar no grande instrumento de seleção para o ensino superior. Na ocasião, o Inep (Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais) adaptou a matriz do Enceja (Exame Nacional de Certificação de Jovens e Adultos).