Uma das inovações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) é a incorporação do desenvolvimento socioemocional às dez competências gerais que fundamentam e norteiam todo o trabalho com os estudantes nas escolas em todas as áreas de conhecimento previstas no documento.
O tema é objeto de polêmica já há alguns anos. Em carta aberta de 2014 na qual criticava a possibilidade de as chamadas competências socioemocionais virarem objeto de avaliações em larga escala, a Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) abordou alguns temas que preocupam educadores. Entre eles está o risco de padronização de comportamentos baseados em valores considerados importantes pelas classes mais favorecidas da sociedade. O texto questionou o que pode ocorrer: “Premiação daqueles alunos que se conformarem aos valores estabelecidos? Segregação e discriminação daqueles que não apresentam as habilidades tomadas como as necessárias para uma sociedade ‘melhor’?”
Em reportagem publicada em 2015 pelo Portal Porvir, o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, falou da dificuldade de engajar professores na pauta das socioemocionais, também chamadas de competências para o século 21. “Muitos deles veem ambas como uma prioridade exclusiva das grandes fundações privadas, associadas a métricas e padrões de desempenho que os educadores enxergam como algo concebido sem consistência pedagógica”, disse. Ele também citou como motivo de desconfiança a tentativa de apresentar o tema como algo inédito, como se a escola nunca tivesse trabalhado, no dia a dia, a formação de valores.
De qualquer forma, a presença das competências socioemocionais no “coração” da BNCC sinaliza para uma ampla mudança das práticas pedagógicas em toda a educação básica. Em tese, não se trata apenas de incluir no currículo conteúdos ou projetos voltados para a “aprendizagem emocional”, pois a ideia não é simplesmente incorporar à rotina da sala de aula atividades para que os alunos “aprendam a ser cooperativos” ou “passem a reconhecer suas emoções”.
O desafio é mais profundo e implica trazer essas habilidades para todas as disciplinas e atividades desenvolvidas na escola numa perspectiva transversal e tendo em vista o desenvolvimento integral dos estudantes, o que afeta diretamente os currículos, os modos de ensino e a aprendizagem.
Embora não exista um consenso quanto à definição dessas competências, há dois referenciais bastante usados e conhecidos: o da Casel (Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning), uma organização de Chicago (Estados Unidos) que trabalha com cinco aspectos de aprendizagem socioemocional – autoconhecimento, autorregulação, sociabilidade, competências de relacionamento e tomada de decisões responsáveis.
Outra linha, que possui pontos de contato com a da Casel, é a do Big Five Factors (Cinco Grandes Fatores da Personalidade). Ela apresenta cinco grandes domínios: abertura a novas experiências, conscienciosidade, extroversão, amabilidade e neuroticismo (instabilidade emocional).
No caso da BNCC, a intenção é, por exemplo, que as aulas de língua portuguesa sejam dadas de modo que os estudantes tenham espaço para trabalhar em grupo, exercitar a cooperação e a autocrítica, tomar decisões baseadas em princípios éticos, entre outras coisas. Desse modo o desenvolvimento cognitivo ocorre de maneira vinculada e simultaneamente a outros tipos de aprendizagem, o que, para alguns educadores significa uma mudança de paradigma no sentido da promoção da educação integral.
Desse modo, o estudante está no centro da aprendizagem – algo amplamente defendido por educadores, presente em textos legais e nas políticas educacionais, mas que raramente é praticado nas escolas.
A cobertura
Do lado da cobertura jornalística sobre a BNCC, o tema tem sido pouco enfocado em matérias e reportagens. Quando a prefeitura de São Paulo anunciou o novo currículo das escolas municipais, o Estadão destacou a inclusão das socioemocionais nele, chamando a atenção para os desafios envolvidos na implementação da proposta de um trabalho transversal, especialmente no que diz respeito ao preparo dos professores.
Mais recentemente, as notícias têm se concentrado nas atividades e ações dos estados e municípios relacionados à formatação dos novos currículos, não necessariamente enfocando as competências básicas.
A Folha de S.Paulo noticiou que uma das estratégias adotadas para a implementação da BNCC é a unificação dos currículos de estados e municípios, com o objetivo de otimizar recursos e capacidade técnica, já que boa parte dos municípios não dispõe de pessoal qualificado para executar essa tarefa. Segundo o texto, todos os estados e o Distrito Federal já aderiram à construção coletiva, caminho sugerido pelo Ministério da Educação.
Na mídia regional, há registros de atividades em estados e municípios, tendo em vista a formatação dos novos currículos. Nesse contexto, as socioemocionais chegam a ser citadas, mas de maneira pontual. É o caso do portal do jornal A Crítica, de Campo Grande (MS), que anunciou a parceria da Secretaria de Estado de Educação com o Instituto Ayrton Senna para incluir o trabalho com as competências socioemocionais no currículo.
Na mesma linha, o portal Região dos Vales, do interior do Rio Grande do Sul, noticiou a inserção da “educação emocional” no currículo das escolas municipais de Santa Clara do Sul por meio do programa Escola da Inteligência.
Outro tipo de matéria sobre as competências socioemocionais são as publicadas pela BBC Brasil e pelo El País, que abordam o conceito e os tipos de habilidades e comportamentos relacionados a elas numa perspectiva mais psicológica do que educacional.
O que vem por aí
À medida que a formatação dos novos currículos avançar, o que deve ocorrer nos próximos meses, será possível ter uma visão mais clara de como os sistemas de ensino farão a transposição das propostas da BNCC para o cotidiano das escolas. Um dos aspectos que merecem atenção dos jornalistas é, precisamente, o tratamento que será dado às competências socioemocionais. Uma pergunta recorrente é: as competências socioemocionais podem ser ensinadas? De que maneira elas podem ser desenvolvidas? Que tipos de estratégias os professores devem ter em mente para trabalhar as socioemocionais no ambiente escolar? Qual o lugar e o espaço do aluno nesse processo?
Há ainda outros alguns pontos aos quais o jornalista deve prestar atenção.
1. Se, de fato, as competências socioemocionais forem incorporadas aos currículos de maneira transversal e ao cotidiano das atividades em sala de aula, elas podem funcionar como indutores de políticas que favorecem a aprendizagem e a educação integral. Ou seja, ao mesmo tempo que os “conteúdos” são abordados, criam-se espaços e condições, no desenvolvimento das atividades, para que os alunos trabalhem em grupo, expressem ideias e opiniões, desenvolvam empatia, entre outras habilidades: o desenvolvimento cognitivo deve caminhar junto com o pessoal.
Em contrapartida, se forem abordadas em projetos ou em atividades complementares às aulas das disciplinas, o risco é de que essas habilidades sejam tratadas numa perspectiva conteudista – muitas vezes através de atividades e materiais didáticos pré-formatados oferecidos às escolas, ou como programas de intervenção. É fundamental, então, na perspectiva da BNCC, ter em mente que as socioemocionais não devem ser tratadas como mais um componente curricular e levar isso em conta ao analisar os novos currículos em fase de construção.
2. Alguns estados e municípios já anunciaram que vão enfatizar as socioemocionais no currículo, como é o caso do Mato Grosso do Sul e da cidade de São Paulo. Vale acompanhar como isso está acontecendo, de que maneira as escolas e as suas equipes estão sendo preparadas para trabalhar com essas competências. Que tipo de iniciativa está sendo implementada? Como ela se insere no dia-a-dia da escola? Quais são os profissionais envolvidos?
3. Vários estudos recentes evidenciam os efeitos do desenvolvimento das habilidades socioemocionais para o desenvolvimento de crianças e jovens. Essas pesquisas ajudam a compreender a contribuição efetiva que elas podem aportar para a educação integral.
No Brasil, o grupo Edulab21, liderado pelo Instituto Ayrton Senna, está desenvolvendo instrumentos para avaliar essas habilidades no contexto escolar.
A OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) lançou um estudo sobre o tema em 2015, no qual identifica, entre outros aspectos, os tipos de habilidades sociais e emocionais capazes de influenciar o futuro das crianças e adolescentes.