O governo Bolsonaro anunciou na quinta (10/2) as regras para renegociação, a partir de março. das dívidas com o Fies (Financiamento Estudantil), vinculadas à MP (Medida Provisória) publicada em dezembro.
A medida possibilita que cerca de 1,3 milhão de pessoas renegociem suas dívidas, com redução de juros e mais prazo para pagar. Ela atende pessoas que contraíram financiamento até o segundo semestre de 2017 – antes, portanto, da implementação do novo formato do programa em 2018.
A dificuldade de conseguir um emprego (intensificada pela pandemia de covid-19), além da falta de dimensão do peso do empréstimo no orçamento são apontadas como as principais causas da inadimplência.
No entanto, na cobertura, é possível ampliar o olhar e ir além da possibilidade de quitação das dívidas, enfocando o financiamento e acesso à educação superior, além do cenário político, entre outras possibilidades. Também é preciso ter em mente que os problemas do Fies não são novos, vêm de algumas décadas.
Como funciona o Fies
O Fies é um programa do MEC (Ministério da Educação) que oferece financiamento para estudantes universitários: as mensalidades são pagas diretamente às instituições de ensino e, quando formados, os estudantes têm que devolver o valor recebido, segundo as regras do contrato, após um período de carência.
O programa foi criado em 1999 com o objetivo de ampliar o acesso de jovens ao ensino superior e, desde então, enfrenta crises e inadimplência. Vale lembrar que um dos desafios do país no campo da educação, já há algumas décadas, é ampliar o acesso à educação superior.
Em 2019, 21% dos adultos de 24 a 34 anos haviam concluído o ensino superior, de acordo com o relatório Education at a Glance 2021 da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). A média da OCDE é de 44%.
O PNE (Plano Nacional de Educação) prevê, na meta 12, que até 2024, a taxa bruta de matrícula na educação superior deve aumentar 50% e a taxa líquida (população de 18 a 24 anos) 33%.
O histórico do programa
O Fies passou em 2010 por alterações profundas, que facilitaram as condições de acesso e o número de contratos disparou. Em 2014, o Fies atingiu o pico, com mais de 700 mil contratos no ano. Na época, o programa respondia por 21% dos ingressantes no ensino superior privado.
Mas o salto de gastos com o programa foi enorme. De 2010 a 2014, o programa consumiu mais de R$ 29 bilhões, acumulando até ali 1,9 milhão de contratos ativos.
A partir de 2015 o Fies passa por enxugamento por conta de restrições orçamentárias do governo e das mudanças de regras para tornar o programa mais equilibrado do ponto de vista financeiro. Naquele ano, passou a existir um teto para o número de financiamentos concedidos , além do aumento da taxa de juros.
Também naquele momento o governo federal passou a centralizar em um sistema a oferta de contratos, antes operacionalizada diretamente pelas instituições.
Em 2017, o programa foi mais uma vez reformulado, com linhas de crédito diferenciadas, dependendo da renda familiar, com possibilidade de juro zero para os estudantes de menor poder aquisitivo (mas com correção da inflação).
O efeito colateral foi que o Fies se tornou menos interessante aos estudantes, as adesões começaram a cair: em 2021, por exemplo, foram oferecidas 93 mil vagas, das quais cerca de 48 mil ficaram ociosas.
A ociosidade de vagas foi usada como justificativa para o governo federal reduzir em 35% o orçamento do Fies para 2022.
Esse novo cenário teve impacto direto sobre o número de ingressantes no ensino superior privado: de acordo com o Mapa do Ensino Superior, entre 2014 e 2019, o número de ingressantes em instituições particulares de ensino superior com financiamento do Fies caiu 19,1%. Vale lembrar que o segmento privado é responsável pela maioria das vagas e matrículas na educação superior.
As instituições de ensino superior privadas ofereceram, em 2019 (último Censo da Educação Superior disponível) cerca de 15 milhões de vagas (dois terços, aproximadamente a distância) e as públicas, 837,8 mil. Do total de matrículas em 2019 (8,6 milhões), 6,5 milhões são no setor privado e 2 milhões no público.
Por sua vez, o setor privado de ensino superior, que se beneficiou fortemente das regras anteriores do Fies, critica as mudanças realizadas nos últimos anos, sobretudo as que restringem acesso a financiamentos de 100% das mensalidades.
Do lado do governo, o Fies impõe um ônus às contas públicas, sobretudo no modelo em vigor até 2017 por vários motivos. Segundo especialistas, foi concedido um elevado número de empréstimos - especialmente até 2014 - e a taxa de inadimplência foi subestimada.
Além disso, no modelo em vigor até 2017 a União era a única participante do fundo garantidor dos empréstimos concedidos aos estudantes. No modelo atual, as instituições de ensino também contribuem com o fundo.
O que está em questão no atual cenário
Tendo esse contexto como pano de fundo, destacamos, a seguir, alguns pontos de atenção.
O problema da inadimplência
Embora a renegociação possa contribuir para a solução do problema individual dos jovens que se veem impossibilitados de quitar suas dívidas, até que ponto a medida colabora para solucionar questões estruturais relacionadas ao financiamento estudantil no país?
Vale lembrar que a inadimplência do financiamento estudantil não é nova – já existia na década de 1970 – e não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, a estimativa em 2018 é que a dívida estudantil superava um valor equivalente a R$ 5 trilhões.
No caso do Fies, a alta inadimplência tem sido vista como efeito colateral do descontrole do programa entre 2012 e 2014 e da falta de diretrizes para cobrança das dívidas. Outro ponto importante, na visão de especialistas, é a ausência de mecanismos eficazes de monitoramento do Fies por parte do governo federal..
Modelos alternativos de financiamento
Alguns especialistas e entidades ligadas ao setor privado de educação superior no país defendem a mudança do Fies para um modelo adotado na Austrália, conhecido pela sigla ECR (Empréstimo com Amortização condicionada à Renda), no qual o pagamento da dívida está vinculado à renda que pessoa passa a ter depois de formada.
Os defensores do modelo alegam que ele é mais justo, pois somente o ressarcimento se dá na medida da capacidade de pagamento da pessoa. Em contrapartida, a implementação do ECR envolveria a cobrança de mensalidade de estudantes das instituições de ensino superior públicas com maior poder aquisitivo.
No Brasil, a cobrança de mensalidade nas instituições públicas é vedada pela Constituição Federal (Artigo 206). A ideia também é rejeitada por setores do campo do debate educacional. Em 2019, esse tema veio à tona com a publicação de um estudo que defendia a cobrança de mensalidades em instituições públicas , lançado pelo Banco Mundial.
Em nível internacional, existem diversos tipos de formatos de financiamento estudantil, como mostra estudo do D3e.
O desafio da ampliação do acesso e da equidade
Considerando a necessidade de ampliar o acesso à educação superior, num cenário em que a maioria – especialmente os jovens das camadas de menor renda – ingressa no sistema privado de educação superior, como viabilizar o acesso e a permanência nos cursos? E mais do que isso, como tornar mais equitativo o acesso ao ensino superior?
Essas são questões que permeiam o pano de fundo da cobertura e podem contribuir para uma visão ampliada do assunto. Nessa perspectiva, vale considerar, os impactos das políticas de ação afirmativa que, mostram estudos, contribuíram para ampliar a participação de egressos da rede pública e de pretos, pardos e indígenas - historicamente excluídos) – nas universidades públicas, ampliando a inclusão social e racial.
Em contrapartida, é preciso levar em conta os efeitos dos cortes orçamentários nas instituições federais, responsáveis pela maior parte das matrículas no segmento público intensificados no governo Bolsonaro.