A promulgação da Emenda Constitucional 108/2020, que cria o novo Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) pelo Congresso Nacional, altera vários aspectos em relação ao modelo atual do fundo, que é a principal fonte de recursos para a educação básica.
Compilamos alguns dos principais pontos de atenção relacionados ao novo Fundeb, complementando e detalhando aspectos abordados nos dois vídeos lançados pela Jeduca sobre o assunto (veja abaixo).
Esse material (texto + vídeos) não pretende esgotar o debate, trazem apenas uma visão geral das importantes alterações. Sugerimos que os jornalistas se aprofundem no tema, ouvindo fontes de diferentes linhas do debate educacional.
A regulamentação
O Fundeb entra em vigor em 2021, mas ainda há uma etapa essencial a ser cumprida para que isso aconteça: a regulamentação, ou seja, o detalhamento de suas regras de funcionamento.
Esse processo já está em andamento no Congresso Nacional através do Projeto de Lei 4372/2020, da deputada Professora Dorinha Rezende. Com só restam alguns meses para dar conta de várias questões fundamentais para o que o Fundo possa funcionar em 2021.
Vários aspectos serão regulamentados, podendo influir no desenho final do fundo. Alguns deles são:
- Mecanismos de distribuição de recursos entre estados e municípios.
- Fatores de ponderação, ou seja, o “peso” de cada modalidade ou etapa da educação básica.
- O uso de recursos do Fundeb para repasses para escolas conveniadas (principalmente na educação infantil e educação especial).
- Definição das categorias de profissionais da educação que poderão receber salários com recursos do Fundeb.
Importante: nem todos os pontos que necessitam de regulamentação serão analisados até dezembro. Um aspecto que deverá ficar para o futuro é a definição de regras para o repasse de recursos para redes de ensino que melhorarem seus indicadores de qualidade, um dos pontos do novo modelo de repasse da complementação da União (leia mais a seguir).
Além disso, está prevista uma revisão dos critérios estabelecidos na regulamentação daqui a dois anos.
Mais recursos e estabilidade?
O Fundeb passou a ser permanente e inscrito na Constituição Federal. Isso é importante porque favorece a estabilidade do fluxo de recursos, o planejamento e a implementação das políticas educacionais de médio e longo prazos.
No segundo vídeo, o presidente da Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação), Luiz Miguel Martins Garcia, defende que o aumento de aporte de recursos para a educação pode favorecer o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, especialmente aquelas para a educação infantil (veja abaixo). A meta 1 prevê que até 2024 é preciso haver oferta de vagas em creche para 50% da população de 0 a 3 anos no país.
Porém, a ideia de que o novo Fundeb vai, necessariamente, aumentar o fluxo de dinheiro para a educação não é unânime: segundo analisa Josué Modesto, secretário estadual de Educação de Sergipe no segundo vídeo, se houver uma forte queda de arrecadação em função de uma crise econômica como a que estamos vivendo, é possível que o aumento não ocorra ou não seja tão grande quanto o esperado (veja abaixo).
Outro aspecto que merece atenção é que a maior parte dos recursos destinados à complementação da União em 2021 depende da aprovação de crédito suplementar pelo Congresso Nacional, já que não foram incluídos no Orçamento do próximo ano – 74% dos R$ 19,6 bilhões previstos.
Também merece atenção o debate em torno da proposta do governo federal de usar parte dos recursos do Fundeb para financiar o programa Renda Cidadã.
Aumento escalonado da complementação da União
Para entender o que é a complementação da União, é preciso compreender como o Fundeb funciona.
O fundo é composto por uma “cesta de impostos” arrecadados nos estados/DF e municípios. Atualmente, o montante é somado e distribuído entre as redes municipais e estadual de um mesmo estado. Quando o valor mínimo não é atingido, a União entra com uma complementação para esses estados e municípios.
No novo Fundeb, a complementação da União passará de 10% para 23%, de maneira escalonada até 2026. O aumento é, em geral, de dois pontos percentuais ao ano:
2021: 12%
2022: 15%
2023: 17%
2024: 19%
2025: 21%
2026: 23%
Considerando valores atuais, a complementação da União passará de R$ 15,8 bilhões para R$ 36,3 bilhões ao ano em 2026.
Como funciona o modelo híbrido
Uma das novidades do novo Fundeb é o chamado modelo híbrido da complementação da União. Segundo a Emenda Constitucional 108, ela será distribuída da seguinte maneira:
10%: da mesma maneira como ocorre atualmente, ou seja, para estados que não atingem o valor mínimo por aluno, considerando sua arrecadação.
10,5%: serão distribuídos para redes de ensino que não atingirem o VAAT (Valor Aluno Ano Total), somando todo o valor disponível para a educação considerando o Fundeb e outros recursos além do Fundeb, independentemente de onde ela se localiza.
Então, um município de um estado que não recebe a complementação de 10% poderá entrar na conta para a distribuição dos 10,5%. Esse critério de distribuição deve reduzir a desigualdade porque vai canalizar recursos para municípios pobres de estados mais ricos, por exemplo. A estimativa é que já no primeiro ano,
2,5%: será distribuído conforme indicadores de melhoria da qualidade.
A regulamentação da distribuição desta parte só deverá ocorrer em 2022, pois ela entra em vigor em 2023. Além disso, a implementação depende de os estados aprovarem leis fixando critérios para a distribuição do ICMS com seus municípios, segundo indicadores de qualidade da educação.
Este modelo, que não é unânime entre especialistas, foi inspirado no Ceará e é apontado por seus defensores como um dos fatores que impulsionaram a melhoria da educação no estado.
Impacto positivo para os pequenos municípios
O aumento da complementação da União deverá reverter em mais recursos disponíveis para a educação básica, principalmente para os pequenos municípios.
Já em 2021, espera-se que 1,4 mil municípios mais vulneráveis serão beneficiados e que o valor mínimo por aluno aumente 19%, segundo a deputada Dorinha. Em 2020, o valor mínimo por aluno foi de R$ 3.643,16.
Embora a expectativa seja positiva, pois acredita-se que com isso muitas redes conseguirão avançar nos indicadores de qualidade, há o desafio do gerenciamento desses recursos, pois, de modo geral, faltam quadros técnicos capacitados para administrar os recursos e as políticas educacionais, sobretudo nos municípios menores e mais vulneráveis.
É essencial então que os jornalistas, principalmente aqueles que atuam na mídia regional e local, fiquem atentos ao uso dos recursos do Fundeb, consultando os órgãos de controle, os conselhos de acompanhamento do fundo (que devem existir em todos os municípios) ou consultando o site do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) ou o Siope (Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos de Educação), onde estados e municípios registram seus dados.
CAQ, um indicador de qualidade
A Emenda Constitucional 108 incluiu o CAQ (Custo Aluno Qualidade) como um mecanismo para definir a qualidade da educação. Durante a tramitação do novo Fundeb no Congresso, houve debates em torno do CAQ, como mostra essa matéria da Jeduca.
Em linhas gerais, o CAQ estabelece um padrão mínimo de qualidade para escolas, com base em insumos considerados essenciais para a oferta de um ensino de qualidade.
Este é um ponto que também precisará ser regulamentado, mas isso não deverá ser feito no contexto da regulamentação do Fundeb e sim no contexto da regulamentação do SNE (Sistema Nacional de Educação), como é explicado no segundo vídeo (veja abaixo).
O SNE ainda não existe, mas está previsto na Constituição Federal e no PNE (Plano Nacional de Educação) e deveria ter sido instituído até 2016. Leia mais sobre o SNE aqui e aqui.
Já existe uma lei prevendo a implementação do Sistema Nacional de Educação em tramitação no Congresso, o Projeto de Lei Complementar 25/2019. A expectativa é que essa lei tramite junto com a regulamentação do Fundeb.
Segundo a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQ é um instrumento que vai estabelecer um patamar mínimo de qualidade, pois define tudo o que uma escola precisa para oferecer um ensino de qualidade, conforme o tipo de escola (escola infantil, escola indígena, escola de ensino médio etc.) e a região onde ela se situa.
Com base nisso, é definido um valor por etapa/modalidade. Geralmente, os repasses previstos pelo CAQ são maiores do que o do Fundeb. O cálculo dessa diferença pode ser feito no SimCAQ (Simulador Custo Aluno Qualidade).
Críticos do CAQ, como o movimento Todos pela Educação, alegam que o mecanismo pode “engessar” e complicar o financiamento da educação porque ele se baseia em uma lista de insumos e deverá exigir recursos adicionais para ser implementado, entre outros pontos.
Além disso, há uma linha de debate que questiona a existência de uma relação direta entre aumento de recursos e melhoria da qualidade da educação, como esse estudo do Banco Mundial.
Em contrapartida, existe o argumento de que uma parcela significativa de escolas brasileiras não conta com a infraestrutura mínima necessária. Uma pesquisa da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) conclui que há uma relação entre precariedade da infraestrutura e baixo Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
Para quem quiser se aprofundar ainda mais neste debate sobre o CAQ, este material da Campanha faz uma defesa, ponto a ponto, de todas as críticas, e este material do Todos, levanta alguns pontos de crítica. Há mais pontos de vistas nesse debate também, e é essencial para o trabalho do jornalista de educação conhecer e contextualizar todos eles.