A PEC 206/2019, que prevê a instituição da cobrança de mensalidade nas universidades públicas, deve voltar ao debate na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados esta semana. O projeto do deputado General Peternelli (União Brasil – SP) prevê a alteração do artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que institui a gratuidade do ensino público.
A proposta ganhou repercussão na última segunda-feira (24/5), quando foi incluída na pauta da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), mas acabou sendo retirada porque o relator da PEC, Kim Kataguiri (UnIão Brasil - SP), não participou da sessão.
A análise da pauta deverá ser retomada nesta terça (31/5), a fim de avaliar se ela fere ou não as chamadas cláusulas pétreas da Constituição, ou seja, para definir se a gratuidade é um dispositivo que não pode ser alterado, nem mesmo por PEC..
Se os deputados concluírem que a proposta não fere uma cláusula pétrea, o mérito será analisado por uma comissão especial com autonomia para alterar o texto. O prazo é de 40 sessões. Aí a proposta poderá ir a Plenário e, para entrar em vigor, terá que ser aprovada por três quintos dos deputados em dois turnos.
Este é um primeiro ponto de atenção dessa cobertura, afinal, embora o debate em torno da cobrança de mensalidades nas universidades públicas não seja novo, esta é a primeira vez que a proposta parece ter força para avançar no Congresso.
O tema já havia sido pauta em 2017, quando o Banco Mundial divulgou um estudo, sobre a eficácia e a equidade do gasto público no Brasil, em que defendia o fim da gratuidade nas universidades públicas.
Caso a matéria avance na Câmara, é esperado um debate intenso em torno do tema. O texto de Peternelli sofreu forte rejeição da oposição, que propôs a realização de audiências públicas - ideia acatada pelo presidente da CCJ, Arthur Maia (União Brasil - BA). O objetivo é prolongar a tramitação do texto.
Esta não é a única proposta sobre o tema na Câmara. Há, por exemplo, uma proposta da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) de que os formandos que obtiverem alta renda, “devolvam” à universidade valores que seriam abatidos do imposto de renda futuramente. O modelo se inspira principalmente no que é feito na Austrália.
Os defensores, como Paulo Meyer, do Ipea, projetam ganhos de até R$ 5 bilhões ao ano às universidades públicas, que poderiam ser usados para despesas não obrigatórias,como manutenção, serviços etc.
Outro frente de apuração que pode ser interessante é que o debate sobre a cobrança das mensalidades no Congresso deverá se dar paralelamente à revisão da Lei de Cotas. Quais serão as teses e propostas defendidas nos dois campos? Quais as propostas para reduzir a desigualdade de acesso e assegurar mais equidade?
Frentes de debate
A proposta de cobrar mensalidade na universidade pública - que já havia circulado em documento assinado por militares, também publicizado na semana passada - despertou reações contrárias entre atores do campo educacional. A (ICTP.Brasil) Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento e instituições federais de ensino superior divulgaram notas contra a medida, que entendem ser uma conversão da educação em mercadoria.
Em contrapartida, os defensores alegam que a cobrança traria mais justiça e equidade para o acesso à educação superior, partindo da premissa que as vagas das instituições públicas são ocupadas por jovens que pertencem às famílias com maior poder aquisitivo. Para isso, a PEC usa como justificativa o estudo do Banco Mundial.
No entanto, em decorrência de políticas como a Lei de Cotas de 2012, o perfil do alunado do ensino superior público brasileiro está mudando. Um estudo da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) mostra que, em 2018, 70,2% dos graduandos das universidades federais tinham renda mensal familiar de um salário mínimo e meio. Portanto, a cobrança de mensalidade afetaria uma pequena parcela dos alunos das federais, que compõem a maior rede de ensino superior público do país.
Além de se basear numa premissa que não condiz com a tendência atual do perfil dos graduandos, a medida envolveria uma série de complexidades na implementação. Por exemplo, a definição de critérios e de uma linha de corte em termos de renda para a efetivas a cobrança.
O autor da proposta declarou em entrevista que os valores seriam definidos a partir do custo de manutenção dos cursos - ou seja, a mensalidade para medicina provavelmente seria maior do que a de pedagogia. Também afirma que a autonomia das universidades para definir parâmetros e valores seria preservada e que os estudantes menos favorecidos poderiam pedir isenção ou redução da mensalidade, o que também envolveria a criação de critérios e procedimentos, estabelecendo grupos diferenciados no universo de estudantes.
Essa lógica, se chegar a ser implementada, mexerá com a concepção de direito à educação instituída pela Constituição de 1988 e na ideia de ensino público e gratuito como instrumento de promoção do desenvolvimento pessoal e social, segundo deputados que criticam a proposta. Em contrapartida, os defensores alegam que ela trará mais justiça social..
Os gargalos da educação
O acesso ao ensino superior no Brasil é, historicamente, um gargalo. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) calculou, na Síntese dos Indicadores Sociais de 2018, que apenas 36% dos estudantes que concluíram o ensino médio ingressaram no ensino superior.
É verdade que, em nenhum país, a totalidade dos jovens cursa avança para o ensino superior, mas as taxas brasileiras estão abaixo, por exemplo, da média dos países que integram a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e mesmo de países latino-americanos. O relatório Education at a Glance de 2021 mostra que no Brasil 21% dos jovens de 24 a 35 anos têm diploma de nível superior, ante a 44% na média da OCDE. Na Argentina, a taxa é de 40% e no Chile, 34%.
Vale lembrar que o PNE (Plano Nacional de Educação) estabelece na Meta 12 que, até 2024, 33% dos jovens de 18 a 24 anos devem estar matriculados no ensino superior.
Assim sendo, é importante levar em conta a questão do acesso no debate em torno da equidade no ensino superior, atentando a fatores sociais, culturais, históricos e até os fatores inerentes ao próprio sistema educacional que amplificam as desigualdades.