Em um país marcado por séculos de escravidão e estruturas racistas persistentes, a escola se torna um espaço estratégico para desconstruir preconceitos, valorizar a história e a cultura negra, além de promover a igualdade racial. Nesse cenário, a educação antirracista é uma ferramenta na construção de uma sociedade democrática.
Fruto de décadas de mobilização dos movimentos negros e sociais, a educação antirracista passou a integrar a agenda pública, principalmente a partir da aprovação da Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. No entanto, ainda hoje, mais de 20 anos após a aprovação, a lei enfrenta muitos entraves para ser efetivamente cumprida, como veremos adiante.
Em 2025, o assunto ganha mais fôlego com a construção do novo Plano Nacional de Educação (PNE), em debate no Congresso Nacional, e pode garantir a educação antirracista como parte das políticas públicas do país.
No entanto, a discussão sobre o tema vai além da inclusão de conteúdos no currículo e da reflexão pontual de casos de racismo na escola. Envolve a formação de professores, a revisão de materiais didáticos, o combate ao racismo estrutural nos colégios e a garantia de que crianças e jovens negros tenham suas identidades respeitadas e valorizadas.
A desigualdade no acesso à educação de qualidade, a evasão escolar de estudantes negros e a falta de representatividade nos espaços de poder educacional mostram que ainda há um longo caminho a percorrer.
Neste material:
- Como a desigualdade racial se desenha na educação brasileira?
- O que é a educação antirracista?
- Perfil geral da Educação Quilombola no Brasil
- Contexto histórico
- O que é e o que diz a Lei nº 10.639/2003?
- Ações de implementação
- Projetos que podem ser exemplo pelo país
- Como acompanhar pautas possíveis?
- Pontos de atenção na cobertura antirracista
Créditos do infográfico: Lorrany Martins
Pesquisas: IBGE/SIS, PNAD Educação 2024/IBGE, Painel Cor ou Raça no Brasil, Datafolha, Brand Inclusion Index 2024 e Percepções do Racismo
A educação antirracista é uma abordagem pedagógica e política que reconhece o racismo como um problema estrutural da sociedade brasileira e busca maneiras de enfrentá-lo em ambiente escolar de forma ativa. Na prática, isso significa ir além do combate a ofensas individuais ou conflitos pontuais de discriminação racial e buscar formas de valorizar e conhecer a história e cultura afro-brasileira, africana e indígena.
A revisão do currículo escolar, o uso de materiais didáticos que valorizem a diversidade racial e a criação de um ambiente escolar que respeite e promova a equidade são partes fundamentais dessa abordagem.
Dentro dessa perspectiva, a educação escolar quilombola também é parte da luta por equidade racial. Trata-se de uma modalidade reconhecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e regulamentada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, definidas pela Resolução CNE/CEB nº08/2012. Essa modalidade reconhece os territórios quilombolas como espaços de saber e propõe um currículo conectado à realidade, à história e às lutas dessas comunidades.
Diferente da educação antirracista, que é uma abordagem pedagógica para todas as escolas, públicas e particulares, essa modalidade é voltada às comunidades quilombolas, combinando os conhecimentos tradicionais com as exigências formais da educação básica. Seu objetivo, segundo as diretrizes, é garantir o direito à educação com respeito à identidade, ao território e aos modos de vida dessas populações.
2.619 escolas em comunidades quilombolas no Brasil, sendo que 91,7% dessas instituições estão em zonas rurais
Matrículas na Educação Quilombola no Brasil
Segmento |
Matrículas |
Educação Infantil |
56.463 |
Ensino Fundamental I |
94.545 |
Ensino Fundamental II |
67.914 |
Ensino Médio |
25.134 |
Educação Profissional |
8.112 |
Educação de Jovens e Adultos |
32.496 |
Total |
279.000 |
Educação Infantil: Recursos Disponíveis
Recurso |
Percentual (%) |
Banheiro acessível para PCD |
23,1 |
Área verde |
22,8 |
Pátio |
55,3 |
Quadra de esportes |
10,9 |
Parque infantil |
9,6 |
Banheiro específico para EI |
18,8 |
Jogos educativos |
66,3 |
Brinquedos para EI |
44,6 |
Materiais para atividades artísticas |
13,4 |
Ensino Médio: Recursos Tecnológicos
Recurso |
Percentual (%) |
Equipamento multimídia |
77,0 |
Computador para alunos |
77,7 |
Tablet para alunos |
15,5 |
Acesso à internet geral |
91,9 |
Internet para alunos |
62,2 |
Internet para uso administrativo |
87,8 |
Internet para ensino e aprendizagem |
64,9 |
Internet banda larga |
73,6 |
Lousa digital |
18,2 |
A educação antirracista no Brasil é resultado de décadas de mobilização do movimento negro brasileiro por uma escola que respeite e valorize a diversidade racial do país. Essa luta ganhou destaque após pressão internacional e demandas por reparação histórica.
Em 2001, a Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, na África do Sul, destacou o racismo como problema global, pressionando o Brasil a adotar políticas afirmativas. Dois anos depois, em 2003, foi sancionada a Lei nº 10.639, marco legal que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para incluir o ensino obrigatório de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. Em 2008, a Lei nº 11.645 ampliou o objetivo ao incluir a história indígena.
Um diagnóstico inédito foi realizado pelo Ministério da Educação (MEC), em 2024, elaborado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC). Foi a primeira vez, depois de mais de 20 anos da sanção da lei, que o governo federal conduziu uma avaliação nacional sobre o tema, com o intuito de formular uma política brasileira a respeito do assunto. Veja alguns resultados do Painel Diagnóstico Equidade:
Diante desse contexto, o governo federal promete investir R$ 2 bilhões, até 2027, na Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq), lançada pelo MEC no ano passado. Serão sete eixos, que vão impactar 5.570 municípios com ações focadas em redes com maiores desigualdades. Segundo o ministério, aproximadamente 97,5% dos municípios brasileiros têm aderido à política e 100% dos estados já adotou.
Na avaliação do Todos Pela Educação, o Pneerq é um avanço histórico, mas possui pontos de atenção e precisará de monitoramento e ajustes contínuos para garantir que seus objetivos sejam atingidos. A organização destacou também que há necessidade de integrar os marcos legais e normativos, como o Estatuto da Igualdade Racial, à estrutura pedagógica e de gestão do plano.
No Congresso Nacional, a discussão é em torno do Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece diretrizes, metas e estratégias para a política educacional brasileira por um período de 10 anos. O PNE atual, instituído pela Lei nº 13.005/2014, teve sua vigência prorrogada até dezembro de 2025, e a construção do novo plano está em andamento no Legislativo desde maio deste ano.
O novo plano é uma oportunidade para fortalecer a educação como direito e, principalmente, para enfrentar as desigualdades raciais estruturais presentes no sistema educacional, como defendem especialistas e movimentos sociais.
Entre maio e junho de 2025, uma consulta pública coordenada pela Frente Parlamentar Mista Antirracismo reuniu mais de 400 propostas da sociedade civil e organizada, e a principal demanda foi a formação de professoras e professores antirracistas, reconhecendo que o racismo compromete a permanência de estudantes negros nas escolas, além de limitar o acesso ao conhecimento e excluir saberes ancestrais desse povo. Essas contribuições compõem o Caderno PNE Antirracista, entregue ao Congresso Nacional como referência para a formulação do novo plano.
A proposta defende a implementação efetiva da Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer) com metodologias ativas e materiais pedagógicos diversos, com ênfase no combate ao racismo religioso. Também destaca a urgência de investimento na educação escolar quilombola, além da criação de métricas claras para monitorar desigualdades raciais nas redes de ensino.
O novo PNE tem previsão de ser votado no final deste ano e, após a aprovação, o desafio será monitorar se e como essas diretrizes serão implementadas nos estados e municípios.
Apesar dos desafios na implementação, projetos inovadores em todo o país demonstram que a educação antirracista é possível, já está em prática em várias escolas e serve de modelo para combater o racismo estrutural nessas instituições de ensino. Portanto, o reconhecimento é essencial.
Um passo importante para isso veio junto com o Pneerq, que é o Selo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva de Educação para as Relações Étnico-Raciais, criado pelo MEC. A iniciativa valoriza financeiramente secretarias de educação, estaduais e municipais, que se destacam pela implementação da Lei nº 10.639/2003 e suas atualizações, reconhecendo ações de formação docente, revisão curricular, políticas de equidade e fortalecimento da educação escolar quilombola.
Quem é Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva?
Primeira mulher negra a integrar o Conselho Nacional de Educação, em 2002, a professora e pesquisadora doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é referência na luta contra o racismo e na defesa de uma educação inclusiva no Brasil. Formada em Letras-Francês e doutora em Educação, a professora Sênior da UFSCar e teve papel fundamental na implementação da Lei nº 10.639/03, sendo relatora do parecer que regulamenta o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Foi relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
Além do selo, diversas iniciativas locais vêm mostrando que é possível transformar o cotidiano escolar a partir de práticas antirracistas. O Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) desde 2002, já identificou mais de 4 mil projetos desenvolvidos em todos os estados brasileiros, premiando práticas pedagógicas que promovem a igualdade racial e de gênero.
A Escola Classe 18 do Gama (Brasília–DF) foi premiada no Prêmio Educar 2024 na categoria Escola – Ensino Fundamental I. Representada por Thiago Pereira Paz, a iniciativa promove momentos de aprendizagem sobre as culturas africana e indígena como forma de combater o ódio, o preconceito racial e a opressão estrutural, por meio de debates, apresentações culturais e bibliografia antirracista.
Outro exemplo, é o projeto “Educando para as relações étnico-raciais na escola: por uma educação antirracista”, coordenado pelo professor Victor Menezes, da Escola Estadual Monsenhor Adelmar da Mota Valença (Canhotinho–PE) também vencedor do Prêmio Educar 2024. A iniciativa promove o protagonismo estudantil por meio de atividades do Plano de Ação para a Educação Étnico-Racial, que inclui exposições orais e apresentações alinhadas às legislações antirracistas.
Uma iniciativa recente é a Olimpíada Brasileira de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena (Obereri). Em sua primeira edição, o projeto envolveu mais de 29 mil participantes em todo o país. O objetivo da olimpíada é valorizar as histórias e culturas dos povos negros e indígenas, promovendo o respeito à diversidade por meio de atividades interdisciplinares e desafios que estimulam o trabalho em grupo, o diálogo e a empatia entre os estudantes.
O projeto “A Terra Fala”, desenvolvido pela equipe Dandara, foi destaque no Espírito Santo na Obereri. Desenvolvido por estudantes do Centro Estadual Integrado de Educação Rural (Ceier), em Vila Pavão–ES, a proposta uniu educação no campo e saberes étnico-raciais por meio de uma exposição artística com colagens, esculturas e tintas naturais, além de oficinas que dialogaram com práticas agrícolas sustentáveis e a diversidade cultural local. O Ceier recebeu o certificado de Escola Antirracista e um kit de materiais didáticos.
A Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Wilson Resende, de Cachoeiro de Itapemirim, também no Espírito Santo, conquistou o 10º lugar nacional e o 2º lugar na região Sudeste na Obereri. Orientado pelo professor de História Ojuobá Pedro Francelino Amador, o projeto reuniu estudantes do ensino médio para a valorização da cultura afro-indígena como ferramenta de transformação social e educacional, fortalecendo a consciência crítica sobre as relações étnico-raciais e evidenciando a importância de práticas pedagógicas inclusivas.
O Quilombo Educacional é projeto do Instituto Guetto em parceria com o Instituto Unibanco, que criou comunidades de prática com gestoras e gestores escolares nos estados do Maranhão, Alagoas e Sergipe, com encontros presenciais e semanais voltados à construção de uma gestão escolar antirracista.
Essas experiências mostram que é possível e urgente construir uma educação que enfrente o racismo estrutural, reconheça os saberes historicamente marginalizados e forme novas gerações mais críticas, empáticas e comprometidas com a equidade.
Como acompanhar pautas possíveis?
- Pnad Educação 2024
- Percepções sobre o racismo
- Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012)
- Declaração de Durban
- Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
- Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003
- Lei nº 11.645, de 10 março de 2008
- Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012
- Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq)
- Painel Diagnóstico Equidade
- Todos Pela Educação: Análise da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq)
- Selo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva de Educação para as Relações Étnico-Raciais
- Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero
- Quilombo Educacional
- Olimpíada Brasileira de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena (Obereri)
- Comunicação Antirracista - um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares
- Expressões racistas: por que evitá-las? (TSE)
- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
- Resolução CNE/CEB nº 08/2012