Ao contrário do que ocorre na maioria dos países, a educação teve papel central na campanha eleitoral mexicana, vencida no mês passado pelo candidato de esquerda Andrés Manoel López Obrador. Convidada no 2º Congresso da Jeduca para a mesa sobre a cobertura das eleições em países latinos, na segunda-feira (6), a jornalista Sonia del Valle fala nesta entrevista sobre o motivo de tanto destaque: a polêmica sobre a reforma educacional adotada no início do mandato do atual presidente, Enrique Peña Nieto, que estabeleceu o acesso à educação de qualidade como direito constitucional (a lei antes só falava em ensino laico e gratuito).
O foco das controvérsias foram os instrumentos criados para se atingir a meta, principalmente a adoção de avaliações periódicas de professores, com possibilidade de demissão dos docentes com baixo desempenho nas provas. Os professores se opuseram à proposta e organizaram diversos protestos, vários deles reprimidos de forma violenta, com registro de mortes.
Obrador prometeu revogar a reforma, reprovada pela opinião pública. Mas, compromissos de campanha à parte, Sonia acha que o jornalismo ainda não deu conta do desafio de informar a sociedade de forma abrangente sobre a nova lei e os problemas da educação no México. “Há muito desconhecimento da opinião pública sobre o tema, sem falar nas redes sociais, onde a desinformação é, para dizer o mínimo, abundante.”
Depois de 15 anos como repórter de educação, Sonia deixou há quase um ano o jornal La Reforma para se dedicar a um projeto que tem tudo a ver com esse desafio. Ela hoje trabalha no Crefal (Centro de Cooperação Regional para a Educação de Adultos na América Latina e no Caribe) e está preparando, para este semestre, o lançamento de uma plataforma para explicar à sociedade como funciona o sistema educacional mexicano.
“Me parece que as coisas não são dicotômicas. Nem todos são maus, nem todos são bons”, disse Sonia nesta entrevista para a Jeduca. “O arcabouço institucional é muito mais complexo e o entendimento que se tem sobre grupos de poder e seus interesses é muito escasso. Isso faz com que a sociedade mexicana busque respostas rápidas para problemas complexos, nos quais muitos atores intervêm.”
Qual foi o peso da educação no debate eleitoral no México? O tema teve mais espaço que em campanhas anteriores?
Na campanha recente, o tema educação esteve no centro do debate em praticamente todo o processo eleitoral. Na verdade, educação já esteve no centro do debate nos últimos dez anos, mais particularmente desde a reforma educacional de 2013 proposta pelo presidente Enrique Peña Nieto [López Obrador só assumirá o cargo em dezembro]. A reforma educacional foi o primeiro grande acordo de cúpula da coalizão governista [encabeçada pelo PRI, partido que dominou a política mexicana no século 20 e voltou ao poder com Peña Nieto]. O acordo deu origem ao Pacto pelo México e, dez dias depois da posse, o presidente enviou ao Congresso a proposta de mudança dos artigos 3º e 73 da Constituição, para garantir o direito a uma educação de qualidade – até então, a lei só falava em ensino obrigatório, laico e gratuito.
Esse direito constitucional estava assentado em vários dispositivos. Primeiro, o governo ficava obrigado a assegurar serviços básicos de qualidade em termos de infraestrutura, material e métodos pedagógicos, organização das escolas e qualificação de professores e diretores para garantir “o máximo avanço de aprendizagem”.
Para cumprir esse objetivo, criou-se um Serviço Profissional Docente e foi elaborado um censo de escolas, alunos e professores. O governo também deu ao Instituto Nacional para a Avaliação da Educação autonomia constitucional.
O debate todo se centrou, desde a aprovação da reforma, na Lei do Serviço Profissional Docente, porque os professores rejeitaram a obrigatoriedade de aprovação nas avaliações, realizadas a cada quatro anos, para permanência no emprego. Antes, os professores praticamente não podiam ser despedidos, mesmo com baixo desempenho. Com a nova lei, os efetivos reprovados em duas avaliações seguidas ficavam obrigados a fazer cursos de formação continuada e passar por nova avaliação no ano seguinte [em caso de nova reprovação, o docente poderia pedir remanejamento para outra atividade no funcionalismo ou requerer aposentadoria]. Para os que tinham ingressado há menos tempo no magistério, a dispensa seria automática, após a primeira reprovação.
Como seria de se esperar, a proposta gerou (e continua gerando) enorme controvérsia, alimentada sobretudo por uma dissidência do SNTE (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação), que num primeiro momento se alinhou com a reforma e o governo de plantão – apesar disso, a presidente do sindicato, Elba Esther Gordilho, foi presa em fevereiro de 2013, um dia depois de a reforma, aprovada na maioria dos legislativos estaduais, ter sido promulgada.
Então, a questão da reforma foi tema tanto da campanha presidencial como nas eleições intermediárias de 2015. A avaliação docente começou a ser adotada em fins de 2014, o que intensificou protestos na campanha do ano seguinte. A SEP (Secretaria de Educação Pública) optou por suspender indefinidamente o processo de avaliação, retomado depois da conclusão do processo eleitoral.
A reforma educativa virou praticamente sinônimo de avaliação docente. São poucos os que analisam a reforma de maneira abrangente. Há muito desconhecimento da opinião pública sobre o tema, sem falar nas redes sociais, onde a desinformação é, para dizer o mínimo, abundante.
López Obrador prometeu revogar a reforma educacional. Como isso foi recebido pela sociedade mexicana?
Com os antecedentes que comentei, minha impressão é de que mesmo o novo governo tem pouco conhecimento do significado e da envergadura da reforma educacional. No entanto, as propostas foram bem recebidas, porque é muito mais fácil dizer que se vai revogar a reforma em lugar de analisá-la em profundidade e ver o que serve, a quem serve, para que serve e o que deve ser feito para avançar.
Tendo dito isto, também considero complicado fazer essa análise porque, no imaginário social, a reforma educacional é a causa da má qualidade da educação mexicana e isso nem a melhor campanha de comunicação consegue reverter. Como dizemos no México, a reforma estão tão queimada que vai exigir uma nova engenharia educacional para que seja aceita pela sociedade ou para mudar a percepção a seu respeito.
Qual reportagem sua recente teve a maior repercussão nesse contexto da campanha?
Teve uma grande reportagem que eu fiz a partir da percepção, depois de 15 anos cobrindo educação, de que falta uma base mínima de entendimento sobre os graves problemas do sistema educacional e dos desafios que isso representa para a sociedade mexicana. Me parece que as coisas não são dicotômicas. Nem todos são maus, nem todos são bons. O arcabouço institucional é muito mais complexo e o entendimento que se tem sobre grupos de poder e seus interesses é muito escasso. Isso faz com que a sociedade mexicana busque respostas rápidas para problemas complexos nos quais muitos atores intervêm.
Qual foi o maior desafio da cobertura jornalística da campanha?
Na questão da educação, creio que o maior desafio é o de certa forma se contrapor às redes sociais com informação de credibilidade, informação jornalística que ajude as pessoas a entenderem o complexo mundo que estamos vivendo. Acho que muitas vezes os meios de comunicação e nós, jornalistas, acabamos tendo como foco denúncias, o que é bom, mas insuficiente para entender o problema.