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Suicídios, um tema desafiador na cobertura de educação

Jornalistas contam como trataram episódios recentes ocorridos em escolas de São Paulo; imprensa tem revisto regra informal de não abordar casos, mas debate ainda está longe de terminar

15/05/2018
Sergio Pompeu

Dois suicídios de alunos do Colégio Bandeirantes, uma das escolas mais tradicionais de São Paulo, ocorridos no intervalo de 12 dias, reacenderam entre os jornalistas de educação um debate bastante antigo na imprensa: deve-se noticiar casos desse tipo? E de que forma?

 

Embora a violência e outros temas difíceis, como incesto e pedofilia, estejam cada vez mais presentes no noticiário, isso não acontecia com as chamadas mortes voluntárias. Vigorou por muito tempo nas redações a norma não-escrita de que não se deve noticiá-las. A alegação era de que as matérias induziriam pessoas com alguma propensão ao suicídio a também se matarem.

 

De fato, existe uma farta literatura científica associando a cobertura de mídia a aumentos localizados de mortes voluntárias. Um exemplo bastante mencionado é o da atriz Marilyn Monroe, que se matou em agosto de 1962. Nos 30 dias subsequentes, houve um aumento de 12% no registro de suicídios nos Estados Unidos.

 

Pelo menos desde o início desta década, porém, o entendimento de que não se deve noticiar suicídios tem sido questionado. Uma das justificativas para a mudança, defendida por especialistas da área da saúde e também por jornalistas, é de que o silêncio da imprensa impede a disseminação de informações importantes para a prevenção e para a própria discussão do fenômeno pela sociedade.

 

Alguns números mostram o quanto a questão é delicada. Projeções da OMS (Organização Mundial de Saúde) indicam que em 2020 haverá cerca de 1,53 milhão de mortes voluntárias no mundo, um crescimento de 74% ante os registros de 2002. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, houve aumento da incidência de mortes por suicídios nesta década, de 5,3 casos por 100 mil habitantes em 2011 para 5,7 em 2015.

 

Um dado importante para o contexto da cobertura educacional é o aumento da incidência de suicídios na faixa etária dos 15 aos 29 anos, população que frequenta o ensino médio e o superior. Segundo o Mapa da Violência 2017, publicação anual baseada em estatísticas oficiais, o índice subiu de 4,4 casos por 100 mil habitantes em 1980 para 5,6 em 2014, um aumento de 27% (como revelou reportagem de Fernanda da Escóssia para a BBC Brasil).

 

A escola pode, em muitos casos, ser o lugar onde a vulnerabilidade ao suicídio se manifesta pela primeira vez, porque é um ambiente onde adolescentes e jovens se sentem desafiados e no qual têm experiências mais intensas de interação social. Também é um espaço que pode trabalhar a prevenção, porque parte da rotina de educadores é observar o comportamento dos estudantes e detectar sinais de insegurança, frustrações e reações inadequadas a pressões.

 

E como a imprensa tratou os episódios recentes em colégios de São Paulo? Depois do primeiro caso no Bandeirantes, no dia 10, a Folha de S. Paulo tentou levantar informações. Falou com o colégio, que confirmou o suicídio, e a família do estudante, que pediu para que não houvesse divulgação. Era, até ali, um caso isolado e, de acordo com o Bandeirantes e os parentes, não tinha relação com bullying nem com a pressão por um bom desempenho escolar. A Folha decidiu, então, não publicar nada.

 

O segundo suicídio aconteceu na madrugada do dia 22, um domingo. O site da Veja publicou uma nota no dia seguinte, que basicamente reproduzia um comunicado interno do colégio para os pais de estudantes. O Estadão aprofundou a cobertura em matéria da repórter Renata Cafardo, que saiu na terça-feira, dia 23.

 

Renata estava de plantão no domingo quando recebeu a informação, repassada pela direção de redação. Ligou para o diretor do Bandeirantes, Mauro Aguiar, que estava a caminho do velório e confirmou a morte. Renata consultou seus superiores e a decisão foi de não publicar nada naquele momento de forma superficial e investir numa reportagem mais abrangente durante a segunda-feira.

 

Com autorização do Bandeirantes, a repórter foi à escola e acompanhou rodas de conversa emocionadas entre alunos, professores e orientadores pedagógicos – a atividade já estava programada depois do primeiro suicídio e não tinha começado por causa período de provas, no qual os adolescentes só vão ao colégio para fazer exames. “O clima era de muita tristeza, coordenadores e professores choravam o tempo todo, as crianças estavam assustadas”, conta a jornalista.

 

Na apuração, Renata recebeu a dica de ler o guia da OMS sobre cuidados que a imprensa deve tomar na divulgação de mortes voluntárias, o que a ajudou a escrever a matéria. “Não divulgamos o nome dos alunos nem o modo como se mataram. Também evitei dar razões simplistas sobre o que tinha acontecido. Não incluí nenhuma das especulações que estavam nas redes sociais ou mesmo comentadas no colégio para uma eventual razão dos suicídios.”

 

No texto, a jornalista limitou-se a informar que os casos tinham perfis distintos, um apontava para premeditação e o outro, para um ato impulsivo. “O mais importante era relatar o ocorrido, sem detalhes, e dar informações para os pais sobre como fazer a prevenção de casos como esses. Na minha opinião, o único objetivo da divulgação é a prevenção.”

 

No curso da apuração, a reportagem do Estadão soube de outros dois suicídios recentes de estudantes, ocorridos nos colégios Agostiniano São José e Vértice. O primeiro tinha acontecido na semana anterior à publicação da matéria da Renata e o outro, no ano passado. Em ambos, as assessorias de imprensa foram evasivas, evitando confirmar oficialmente, mas sem desmentir os fatos apurados por repórteres do jornal.

 

A Folha noticiou os casos no dia 24, em matéria da repórter Marina Estarque, do caderno Cotidiano. “Recebi a orientação de não centrar o texto nos casos em si, mas falar do tema de forma mais ampla, ouvindo especialistas para orientar, principalmente, pais de adolescentes.”

 

Como Renata, Marina omitiu algumas informações que poderiam acentuar a dor das famílias das vítimas ou da comunidade da escola. Ela chegou a conversar rapidamente com um parente de um dos meninos, mas preferiu não divulgar o conteúdo da conversa.

 

Um dos aspectos que mais chamaram a atenção da repórter da Folha foi o nível de ansiedade dos pais nas redes sociais. “Vários deles estavam aterrorizados, havia um monte de boatos de casos não confirmados em outras escolas e muita especulação de que os suicídios estavam ligados a aplicativos e jogos como o Baleia Azul”, disse, referindo-se a um “desafio” criado na Rússia que induziria adolescentes ao suicídio e já tinha provocado apreensão em escolas brasileiras no ano passado (veja reportagem de Angela Chagas, Larissa Roso e Itamar Melo no jornal Zero Hora).

 

Marina também se amparou no guia da OMS para orientar sua cobertura, mas se deparou com um problema inesperado, o excesso de referências. “Toda hora aparecia uma cartilha diferente no meu-email, era muita informação e pouco tempo para processar.”

 

Para o editor do Cotidiano, Eduardo Scolese, a cobertura do tema antes considerado tabu faz sentido desde que a narrativa não explore casos específicos, abordando "um problema real do dia a dia das famílias, muitas vezes invisível". "Temos de oferecer dicas aos leitores de como observar se uma pessoa está nesse caminho e o que fazer caso algum sintoma esteja presente. Dicas para pais, filhos, professores etc."

 

As duas reportagens ficaram entre as mais lidas do Estadão e da Folha durante os dias em que foram publicadas. A abordagem dos jornais ajudou a encaminhar a cobertura para um tom correto, acredita a repórter da Rádio Jovem Pan Marcella Lourenzato. “Acho que essas matérias ajudaram a construir um debate qualificado”, diz.

 

Em um primeiro momento, a chefia de redação da Jovem Pan chegou a cogitar a hipótese de não abordar o assunto. Mudou de opinião pela repercussão do noticiário e pela aflição de mães, que compartilharam no grupo de whatsapp da emissora posts de pais desesperados nas redes sociais.

 

“Decidimos não focar nos casos em si. Procurei a OMS e também falei com colegas mais experientes”, diz Marcella, cuja matéria foi ao ar no dia 30. “Os jovens são muito atingidos pela repercussão na web e até por séries como a '13 Reasons Why' [da Netflix, sobre uma jovem que antes de se matar grava fitas na qual descreve como foi magoada por colegas em diferentes situações], então é nosso dever falar sobre o assunto, com ênfase na informação sobre prevenção.”

 

Mesmo com essas premissas, Marcella destacou a complexidade da cobertura. “Não dá para glamourizar as pessoas que se suicidam nem menosprezar o sentimento delas, dizendo, por exemplo, que eram garotos de classe média alta que tinham tudo na vida.”

 

Caracterizações estereotipadas, como essa dos jovens favorecidos socialmente que não sabem lidar com contratempos porque os pais não impõem limites, ou a de tachar o colégio de excessivamente rigoroso, insensível para as dificuldades enfrentadas pelos alunos, foram alguns dos efeitos colaterais danosos da cobertura jornalística mencionados por pessoas ligadas ao Bandeirantes ouvidas pela Jeduca.

 

Embora algumas dessas definições ligeiras tenham sido reforçadas por especialistas ouvidos por alguns veículos, nem sempre elas partiram da imprensa. Apareceram muito nos comentários de internautas sobre as reportagens. “Vários alunos e pais ficaram incomodados. Teve o caso de um estudante de apenas 11 anos que ficou muito indignado com as tentativas de atribuir a culpa por tudo que aconteceu aos pais”, contou um diretor da escola.

 

Mas as pessoas ouvidas pela Jeduca também apontaram equívocos de veículos de comunicação, como publicar informações sem ouvir o colégio ou apontar supostas motivações dos suicídios, envolvendo terceiros. O episódio mais grave, segundo o diretor, foi o de uma emissora de televisão que decidiu gravar um “fala, povo” na porta da escola, ouvindo estudantes. “Os próprios alunos desceram em massa para a rua para protestar, dizendo que aquilo era totalmente inadequado. Mães que viram a aglomeração também se juntaram ao protesto e o clima ficou bastante tenso.” No fim, a equipe de reportagem desistiu de levar a pauta adiante.

 

Parte desse debate chegou à rede de associados da Jeduca. Uma das assessoras de imprensa do Bandeirantes, Patrícia Oliveira, postou um comentário na rede comentando a cobertura. O tom, de modo geral, foi elogioso. “Confesso que me surpreendi positivamente com veículos e colegas de profissão que tiveram o cuidado de explorar esse assunto de forma ética, cuidadosa”, escreveu Patrícia, antes de fazer um contraponto. “Em contrapartida, tive o desgosto de ver jornalistas/veículos muito experientes cometendo o erro de não ouvir os dois lados da história e sair por ai crucificando e encontrando culpados. Uma pena para a audiência, que é direcionada ao julgamento, e não à escuta.”

 

Contratada como consultora pelo Bandeirantes logo depois do primeiro caso, a psicóloga e psicoterapeuta Karina Okajima Fukumitsu afirma que se deve evitar tentativas de apontar culpados ou determinar um motivo específico para suicídios. “A verdade vai embora com quem se matou”, diz. “É preciso preservar a imagem dele e também preservar os ‘sobreviventes. E a imprensa precisa destacar que suicídios sempre dependem de vários fatores.”

 

Muito procurada para entrevistas nos últimos dias, Karina diz que teve declarações deturpadas em alguns casos e recebeu mensagens agressivas em redes sociais por causa disso. “Disse a um jornalista que parece que todo mundo está pedindo socorro. Levei um susto quando vi um título no site que afirmava algo na linha de ‘psicóloga do Bandeirantes diz que todo mundo está matando’.”

 

Na sua tese de pós-doutorado (em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) na Universidade de São Paulo, Karina conta um episódio em que a divulgação de um suicídio contribuiu para traumatizar ainda mais uma paciente. Ela soube da morte do pai por meio de um programa de rádio policialesco. O pai havia descoberto que a amante tinha um caso. Matou a mulher e depois se suicidou. “Ela disse que, de herói, o pai virou homicida, suicida e traidor da mãe.” A exposição, em tom sensacionalista, tornou mais difícil processar uma situação já bastante dramática.

 

Além da OMS, a Associação Brasileira de Psiquiatria também editou um guia para a imprensa, que sugere cuidados ao abordar suicídios, mas sustenta que reportagens com enfoque adequado contribuem para lançar luz sobre a importância social do tema e divulgar formas de prevenção. O G1 foi um dos veículos que investiram nesse enfoque, em reportagem especial publicada separadamente da notícia sobre os suicídios de alunos do Bandeirantes. Assinado por Ana Carolina Moreno, Carolina Dantas e Monique Oliveira, o texto reuniu estatísticas oficiais, depoimentos de vários especialistas e de pais de jovens que se mataram.  

 

Um veículo que abordou o tema em geral, mas também especificamente o papel da imprensa na cobertura, foi a TV Globo. No programa Conversa com Bial levado ao ar no dia 26, o apresentador da Globonews André Trigueiro mencionou argumentos que já tinha exposto em um livro no qual defendeu a abordagem mais frequente de suicídios pela imprensa. Em entrevista dada ao G1 em 2015, na época do lançamento do livro, Trigueiro disse que suicídios são considerados tema de saúde pública em todo o mundo e, segundo a OMS, em 90% dos casos eles podem ser prevenidos, porque estão ligados a “psicopatologias de ordem mental diagnosticáveis e tratáveis”. “Enquanto esse assunto for um tabu, enquanto permanecer invisível, fora do radar da sociedade, não é possível imaginar que os casos sejam reduzidos. Qualquer doença é tratada com informação, como dengue, hanseníase, câncer de mama.”

 

Uma reportagem que talvez tenha capturado o momento de mudança na postura da mídia é “O Suicídio na Pauta Jornalística”, escrita por Carolina Pompeo Grando para o Observatório de Imprensa em 2010.

 

No texto, Carolina recupera o histórico da discussão do debate sobre homicídios, desde o sociólogo francês Emile Durkheim, que em um estudo de 1897 via com descrença o poder da imprensa de, ao silenciar sobre o assunto, contribuir para a redução do número de casos – o efeito seria, na melhor das hipóteses, marginal. “A intensidade da tendência coletiva permaneceria a mesma, porque o estado moral dos grupos permaneceria o mesmo”, escreveu. “Na realidade, o que pode contribuir para o desenvolvimento do suicídio ou o do crime não é o fato de falar deles, é a maneira como se fala.”

 

No exterior

 

Nos últimos anos, países como a Austrália e a Áustria debateram bastante a questão da cobertura de suicídios e elaboraram guias elogiados para orientar o trabalho jornalístico. Ambos estão entre os 16 países que produziram recomendações para jornalistas listados no site da International Association for Suicide Prevention. Existe até um site específico de dicas para a cobertura, o reportingonsuicide.org, criado por um coletivo internacional que reúne instituições de saúde, jornalistas, organizações de mídia e escolas de Jornalismo. 

 

Nos Estados Unidos, onde os episódios de violência nos ambientes escolares são frequentes, a cobertura de imprensa muitas vezes ignora algumas das normas dos guias. Em algumas situações, os veículos receberam duras críticas. No ano letivo de  2003/2004, seis estudantes da New York University se suicidaram; o jornal The New York Post estampou na capa a foto de uma das vítimas caindo de um prédio.  

 

Ainda que hoje não se repitam tais excessos, pelo menos nos grandes veículos, o noticiário muitas vezes alia trabalhos investigativos de fôlego com descrições de como os jovens se mataram – prática condenada por especialistas, porque pode estimular o efeito copycat (imitadores). Um exemplo é a matéria publicada em 2015 pela revista The Atlantic sobre duas escolas de ensino médio do rico Vale do Silício, Palo Alto High e Gunn, que tinham incidências de suicídio até cinco vezes superiores à média dos Estados Unidos.

 

 

Os exemplos da imprensa americana mostram que ainda há necessidade de aprofundar o debate sobre o noticiário de suicídios. Nesse sentido, um amplo estudo realizado por pesquisadores australianos em 2010 lançou um alerta.

 

Os pesquisadores analisaram 97 pesquisas que investigaram nos últimos 50 anos a correlação entre a cobertura de imprensa e o estímulo à cobertura suicida. Embora a maioria das pesquisas tenha origem nos Estados Unidos, foram analisados estudos de países como Inglaterra, da própria Austrália, do Japão e da China (Hong Kong). A análise dos cientistas australianos identificou uma correlação consistente entre o noticiário e aumentos localizados de casos de suicídio.

 

“Divulgações irresponsáveis de suicídios na mídia noticiosa e de informação podem influenciar atos de copycats”, escreveram os autores na conclusão do trabalho. “Os achados desta revisão bibliográfica não devem ser interpretados como um alerta em favor da censura; é sabido que a mídia tem um papel a desempenhar na tarefa de disseminar a visão do suicídio como questão de saúde pública. Em vez disso, nossas conclusões devem ser interpretadas como indicativo de que a divulgação do suicídio na mídia precisa ser feita de forma responsável, com uma interpretação balanceada do ‘direito à informação’ do público.”

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