Este site usa cookies e dados pessoais de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você declara estar ciente dessas condições.
OK
A associação
Notícias
Guias
Congressos
Dados educacionais
Edital
Editora pública
Banco de fontes
CONTATO
ASSOCIE-SE
LOGIN ASSOCIADO
Wilson Dias/Agência Brasil
Guias e Miniguias

Debate em torno da educação de estudantes com TEA

Parecer do CNE aprovado no final de 2024 sobre o tema levantou polêmicas e traz orientações sobre o atendimento dos alunos autistas nas escolas

26/02/2025
Johanna Nublat

O debate sobre a inclusão de estudantes autistas nas escolas foi um dos temas bastante discutidos pela imprensa em 2024 por causa do parecer nº 50/2023 do Conselho Nacional de Educação (CNE). Ele propunha oferecer orientações específicas às redes de ensino do país, sobre o atendimento mais adequado aos estudantes com TEA (Transtorno do Espectro Autista).

 

A individualização da experiência acadêmica (e até que ponto) para estudantes autistas, a oferta de profissionais de suporte na escola (e quais profissionais, com qual formação), e o uso das estratégias empregadas nas terapias e validadas pela ciência na sala de aula são alguns das questões centrais do debate que se arrastou no último ano — e que segue aberto em várias frentes.

 

Em dezembro de 2023, uma primeira versão do parecer 50 foi aprovada por unanimidade pelo conselho pleno do CNE e encaminhada para homologação pelo ministro da Educação, Camilo Santana. No entanto, alvo de críticas conceituais e em relação a alguns de seus pontos chave, o documento foi devolvido ao conselho para ser rediscutido. Uma segunda versão foi aprovada em 5 de novembro de 2024 e homologada pelo ministro uma semana depois.

 

Segundo a legislação em vigor, cabe ao MEC "formular e avaliar a política nacional de educação, zelar pela qualidade do ensino e velar pelo cumprimento das leis que o regem”. É função do CNE, por outro lado, assessorar o ministério no diagnóstico dos problemas do setor, deliberar sobre ações que possam aperfeiçoar a educação e emitir parecer sobre temas relevantes para a área.

 

O texto que foi homologado pelo ministro Santana (assim como este parecer, todas as deliberações finais do conselho pleno e das câmaras devem ser chanceladas pelo ministro) menciona que o CNE também tem a missão de atender "às demandas, dúvidas e pedidos de orientação da sociedade” e que “nos últimos anos, observamos um aumento na demanda por orientações e informações encaminhadas ao CNE relacionadas aos estudantes com TEA”. 

 

O parecer tem um caráter orientativo, mas, uma vez homologado pelo ministro da Educação, se tornou uma norma educacional com eficácia plena que vale para todo o sistema.

Neste material:
- Por que orientar sobre o autismo nas escolas?
- A primeira aprovação do Parecer 50
- As críticas contra o parecer original aprovado
- O novo Parecer 50
- O impacto do Parecer 50
- Como acompanhar: pautas possíveis

 

O que é o autismo


O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento de base eminentemente genética e hereditária, cujo primeiro diagnóstico amplamente conhecido é de 1943, nos Estados Unidos. Ainda que o transtorno já existisse antes disso, suas características não estavam bem descritas pela medicina nem associadas a um diagnóstico específico. 


Desde sua primeira descrição, os critérios para o diagnóstico e até o entendimento sobre o próprio transtorno mudaram várias vezes. Atualmente, a versão mais atualizada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais estabelece dois critérios básicos que devem ser cumpridos para diagnosticar alguém dentro do que foi chamado de Transtorno do Espectro Autista: 

- deficits persistentes na comunicação social e na interação social em multiplos contextos
- padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. 


Essas características devem estar presentes já na primeira infância (ainda que o diagnóstico venha tardiamente), causar prejuízos clinicamente significativos, e não podem ser explicadas por deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento.


Essa definição, que é de 2013, estabeleceu a visão do autismo como um espectro. Não se trata, no entanto, de uma linha contínua, mas de diferentes eixos de habilidades que podem estar mais ou menos desenvolvidas. 


Nesse espectro, há pessoas que necessitam de diferentes níveis de suporte em seu cotidiano, começando por pessoas que necessitam de um suporte menor (nível 1) até pessoas que necessitam de um suporte significativo (nível 3, muitas vezes associado a pessoas que falam pouco ou nada, ou que têm deficiência intelectual). 


O espectro também significa que as pessoas podem caminhar ao longo dele durante a vida, dependendo do acesso a terapias, à educação e a questões próprias ao indivíduo e a sua dinâmica de vida. 


Importante lembrar que, por ser um transtorno do neurodesenvolvimento, o autismo não tem cura, e que terapias respeitosas e adequadas, inclusão escolar efetiva, suporte às famílias e aos autistas por meio de políticas públicas educacionais, culturais, de saúde e laborais são cruciais para o desenvolvimento de habilidades e a inclusão das pessoas autistas em diferentes âmbitos.

 

 

Por que orientar sobre o autismo nas escolas?


Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano, em 2000, estimava-se que havia uma criança autista a cada 150 crianças de 8 anos de idade. Em 2020, que é a estimativa mais recente disponibilizada pelo CDC, a prevalência é de 1 em cada 36 crianças.


Parte importante desse crescimento ocorreu porque o diagnóstico de autismo mudou ao longo dos anos e passou a abarcar mais pessoas sob o guarda-chuva de um espectro autista. Ou seja, pessoas que tinham outros diagnósticos passaram a ser enquadradas dentro do TEA.


O crescimento também é justificado por um maior conhecimento sobre o transtorno, de maneira que mais pessoas têm acesso ao diagnóstico. Por fim, especialistas não descartam um aumento real de nascimentos de crianças autistas (por fatores ainda majoritariamente desconhecidos).


O aumento de casos de TEA associado a mudanças estruturais na educação inclusiva, com o estabelecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em 2008, impulsionaram o crescimento exponencial de matrículas de estudantes autistas em salas de aulas regulares nas escolas brasileiras. 


Em 2017, cerca de 89,3 mil alunos autistas estavam matriculados em salas regulares de escolas públicas e privadas brasileiras; em 2023, esse número tinha saltado para 607,1 mil. 


O eixo da educação inclusiva, a partir de 2008, está no AEE (Atendimento Educacional Especializado). Ele é estruturado ao redor das salas de recursos multifuncionais da própria escola (quando existentes), de outra escola ou em centros conveniados, funcionando como serviço complementar e/ou suplementar, e sendo realizado prioritariamente no contraturno. 


O Censo Escolar da Educacão Básica, no entanto, revelou que o acesso ao AEE por parte de estudantes autistas e com outras deficiências ainda é insuficiente. Dados de 2023 mostram que alunos com idades entre 4 e 17 anos com deficiência, transtorno global do desenvolvimento (categoria que inclui os autistas) e altas habilidades — três grupos que são o público alvo do AEE — estavam, em sua maioria, matriculados em classes regulares sem acesso ao serviço do AEE (53% das matrículas). Outros 42% dos estudantes estavam matriculados em classes regulares com acesso ao AEE, e 5% estavam matriculados em classes especiais.


Pelo que indica o próprio CNE no parecer, ao mencionar a crescente demanda por orientações sobre o atendimento de estudantes autistas, o contexto atual gera dúvidas nas redes de ensino. 


As principais legislações em vigor — a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a Lei Berenice Piana e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência —, as políticas setoriais e outros atos normativos não necessariamente dialogam entre si, adotando nomenclaturas e descrições distintas (como é o caso dos profissionais que atuam como suporte nas escolas), o que causa confusão e insegurança sobre os direitos que devem ser ofertados.


No caso do Plano Educacional Individualizado (PEI), por exemplo, um dos eixos centrais do parecer 50, ainda que esse instrumento não estivesse descrito em nenhuma normativa federal da educação até aqui, vários Estados adotavam uma variante sua (com nomenclaturas também distintas). Segundo levantamento do site Diversa, 20 entre as 27 unidades da federação têm menções formais a um instrumento como o PEI. Ainda assim, havia resistência de especialistas e até de técnicos dentro do MEC para sua adoção como uma diretriz federal.


Até mesmo o AEE, figura central da educação na perspectiva inclusiva, estruturado há mais de 15 anos, também está longe de ser uma realidade bem estabelecida — sobretudo nas escolas particulares. Mesmo onde o serviço existe, muitas vezes ele não funciona na frequência necessária nem há clareza sobre até onde ele opera (apenas no contraturno e nas salas específicas, ou como referência para o professor regente e orientando as famílias?).


Uma projeção feita pelo Instituto Rodrigo Mendes usando dados do Censo Escolar 2023 revelou que, se seguida a tendência da formação continuada de professores em educação especial observada entre 2012 e 2023, seriam necessários 540 anos para capacitar todos os professores regentes do país no assunto.


O contexto em que o CNE debateu o parecer 50 foi, assim, de enormes desafios para a inclusão efetiva de alunos com deficiência. Além dos obstáculos já mencionados, frequentes notícias relatam casos de judicialização das escolas para ofertarem profissionais de apoio e acompanhantes especializados, mães tendo que entrar nas escolas para apoiar diretamente seus filhos, matrículas negadas, evasão escolar precoce e denúncias de capacitismo.


Segundo o CNE, em 2017, foi constituída uma comissão, no âmbito da Câmara de Educação Básica, para promover a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial; e, em 2019, foi criada uma subcomissão de especialistas para assessorar essa comissão.  O trabalho de especialistas debruçados sobre o atendimento a alunos autistas acabou temporariamente suspenso depois que o então governo editou, em 2020, o decreto 10.502, que instituía uma nova política da educação especial.  Esse decreto foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, sob o entendimento de segregar os alunos com deficiência. 


A partir de uma consulta jurídica feita à AGU (Advocacia-Geral da União) junto ao MEC, encaminhada pelo CNE em 2022, o grupo de especialistas que trabalhava no tema específico de alunos com TEA redirecionou o trabalho para estabelecer uma orientação sobre o atendimento a estudantes autistas a partir da legislação que está em vigor, sobretudo a Lei Berenice Piana, de 2012, e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015, o que levou às discussões que desembocaram no parecer 50.

 

 

A primeira aprovação do parecer 50

Em 5 de dezembro de 2023, o conselho pleno do CNE aprovou por unanimidade a primeira versão do parece 50, que trazia como anexo um longo relatório técnico científico chamado “NORTEAR, Orientações para o Atendimento Educacional ao Estudante com Transtorno do Espectro Autista – TEA”, elaborado por um grupo de trabalho de especialistas voluntários.

 

O documento trazia uma explicação sobre a história do diagnóstico do autismo, as principais características do transtorno e os três níveis de suporte que hoje são usados para dividir o espectro. Em seguida, usava os pilares de "acesso, permanência, participação e aprendizagem” da educação inclusiva, previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência, para argumentar sobre o contexto atual de leis, normas e práticas relacionadas aos direitos e à educação de autistas. 

 

Em um terceiro eixo — alvo de uma das principais controvérsias —, o anexo abordava o planejamento educacional para o aluno autista, diferenciando dois instrumentos que deveriam ser usados para tanto: o PAEE (Plano de Atendimento Educacional Especializado), já sedimentado em normativas federais da educação (como o Decreto nº 7.611/2011 a Resolução nº 4/2009 do CNE), e o PEI (Plano Educacional Individualizado), instrumento usado por outros países e vários Estados e municípios brasileiros, mas que, até então, não constava de uma diretriz do MEC.

 

O parecer descrevia o plano do AEE como "a definição das necessidades, recursos e atividades a serem desenvolvidas no âmbito das salas de recursos multifuncionais ou em Centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos” (…) "preferencialmente no contraturno”. 

 

Para a construção do plano do AEE, o parecer remetia a um roteiro que recomendava considerar objetivos gerais e específicos; a definição do local onde o atendimento seria realizado (se em salas de recursos multifuncionais ou em outros centros), da frequência e dos participantes do serviço educacional especializado; as atividades a serem realizadas e os materiais que seriam usados; a interface do professor do AEE com os demais professores e profissionais envolvidos no caso; e, por fim, a articulação de parcerias multidisciplinares e avaliação de resultados.

 

Já em relação ao PEI, o parecer original era mais específico. Estabelecia que o PEI deveria ser feito em, no máximo, 30 dias do início das aulas. Caso o aluno continuasse na mesma escola, ele deveria ser refeito antes da conclusão do ano letivo, para estar pronto para o reinício das aulas. Também explicava que o PEI deveria considerar as habilidades, potencialidades e necessidades do estudante para, a partir delas, estabelecer as “habilidades-alvo (dentre as habilidades de aprendiz, desenvolvimentais e acadêmicas), descritas de maneira mensurável, com o desempenho mínimo a ser alcançado a curto prazo. O documento deve conter o objetivo mínimo de cada habilidade-alvo e um conjunto de programas de ensino para alcançá-los”.

 

O parecer original traçava uma diferença marcante entre o plano do AEE e o PEI. Enquanto o primeiro seria implementado apenas em "salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública, ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos” — nem sempre disponíveis ou acessíveis às famílias. A implementação do segundo ocorreria em "todo o espaço escolar, podendo auxiliar atividades em casa para responsáveis e cuidadores”.

 

Autores do parecer original foram muito enfáticos em defender a importância do PEI como instrumento para individualizar as necessidades e efetivar a inclusão em sala de aula, seja no sistema público ou privado, seguindo experiências bem sucedidas e consolidadas em outros países há anos. Para tanto, ofereciam no parecer original um roteiro a ser seguido.

 

Um quarto eixo do parecer — também alvo de críticas — sugeria que a escola considerasse o emprego de práticas baseadas em evidência científica já bem estabelecidas no campo da saúde, para garantir maior efetividade no ensino de alunos autistas. O texto trazia uma lista de tais práticas já estudadas e validadas, como uso de apoios visuais, análises funcionais (uma análise que permite identificar a função de determinados comportamentos), da CAA (comunicação aumentativa e alternativa, para alunos que não falam fluentemente), uso do reforço para aumentar a frequência de determinados comportamentos, e treino de habilidades sociais.

 

Nessa mesma linha, o parecer recomendava que, nos programas de ensino, estivessem descritos os tipos de ajuda que o aluno precisaria receber para completar a atividade — uma dica verbal, uma dica gestual, um toque físico ou mesmo uma ajuda física completa — e os critérios para a retirada dessa ajuda, de modo que o estudante caminhasse para realizar a atividade com independência. Também recomendava que as tentativas de ensino fossem registradas numa folha, informando erros, acertos e os tipos de ajudas empregados. Ambas as estratégias são elementos usados no cotidiano da ABA (análise do comportamento aplicada, na sigla em inglês), uma das principais terapias usadas para treinar habilidades com pessoas autistas.

 

Por fim, como último bloco, o parecer 50 original tratava dos profissionais chave envolvidos na educação dos alunos autistas e definia conhecimentos básicos que deveriam constar de capacitações desses profissionais. Além de tratar do professor regente da sala de aula e do professor do AEE, o texto falava sobre o acompanhante especializado ao estudante autista, previsto na Lei Berenice Piana, específica sobre os direitos das pessoas autistas. Esse foi mais um motivo de controvérsia. 

 

O parecer original diferenciava a função desse acompanhante especializado das atribuições de outro profissional, o de apoio escolar (previsto em outra lei, o Estatuto da Pessoa com Deficiência), e especificava a formação mais adequada para o acompanhante especializado. 

 

Enquanto o profissional de apoio era responsável por higiene, locomoção e alimentação, o acompanhante especializado se dedicaria a ajudar em atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais, podendo ainda auxiliar no ensino de habilidades "sempre sob a orientação e supervisão tanto do professor do AEE quanto do professor regente da classe comum”.

 

Apesar de ter sido aprovado por unanimidade pelo conselho pleno do CNE, o parecer não foi homologado pelo ministro da Educação e voltou para ser reescrito e reavaliado pelo conselho.

 

 

As críticas contra o parecer original aprovado

 

A primeira crítica contra o parecer 50 original é conceitual, ao argumentar contra um parecer da educação exclusivo para o autismo. Segundo essa crítica, especificar soluções para estudantes autistas significaria focar na deficiência da pessoa em vez de olhar para as barreiras existentes no meio para sua plena participação na sociedade. Ou seja, seria ir contra o modelo social da deficiência — que percebe a deficiência como um fenômeno social, em contraposição ao modelo médico.

 

Algumas vozes dessa corrente foram além, argumentando contra a possibilidade de se individualizar qualquer atividade para estudantes autistas. Segundo essa avaliação, a adaptação significaria a imposição de limites ao aprendizado, ou seja, a determinação externa do que alguém pode ou não aprender, o que seria em si uma manifestação de capacitismo. Por outro lado, quem defende essas adaptações diz o oposto, acredita que o capacitismo se dá ao não se adequar a escola e as atividades para a plena participação do estudante com TEA. 

 

Uma crítica mais específica sobre o parecer 50 original é sobre o estabelecimento do PEI como uma diretriz federal da educação. Durante audiência pública no Senado Federal, em junho de 2024, o Ministério da Educação argumentou que uma parte das atribuições dadas pelo parecer ao Plano Educacional Individualizado — como o diálogo com as famílias e profissionais que atendem o aluno e a intersetorialidade — já estava contemplada pela política em vigor. 

 

Ou seja, para uma parte dos críticos, o PEI seria redundante ao que já estava previsto nas normativas do MEC. A afirmação, no parecer original, de que a implementação do plano do AEE estaria restrita às salas de recursos multifuncionais ou centros de AEE, preferencialmente no contraturno, também foi rebatida por críticos. Eles argumentam que, segundo as diretrizes já em vigor, a implementação do serviço de AEE também deve ocorrer na sala de aula e como orientação aos pais – ainda que essa não seja a realidade na maior parte dos casos.

 

Outra reação ao estabelecimento do PEI volta na ideia de se rejeitar uma individualização da prática escolar a partir de necessidades identificadas no estudante, e ainda por meio de orientações recebidas da equipe multidisciplinar da saúde. O parecer 50 original também foi muito criticado por que se enxergou nele uma intenção de levar para o meio escolar abordagens identificadas como do campo da saúde. 

 

Um segundo ponto que gerou controvérsia é a indicação do uso, em ambiente escolar, das práticas baseadas em evidência frequentemente empregadas em terapias direcionadas a autistas. Elas incluem procedimentos vinculados à terapia ABA, uma abordagem correntemente usada nos Estados Unidos e uma das recomendadas pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças americano. 

 

Apesar disso, ela já foi criticada por práticas abusivas do passado ou por eventual má aplicação feita por terapeutas pouco qualificados. E ainda há simplesmente os críticos que se opõem a uma abordagem de terapias comportamentais, menos difundidas no Brasil e que enfrentam preconceito de alguns grupos. 

 

Ligada a essa percepção de que uma abordagem clínica estaria sendo indevidamente levada para a escola está a previsão, no parecer original, das funções e da formação do acompanhante especializado para autistas. O profissional é previsto na Lei Berenice Piana, mas sua formação nunca foi regulamentada nem estabelecida. O parecer original é enfático em diferenciar suas  funções das de outro profissional: o de apoio escolar, para estudantes com deficiência em geral, previsto na Lei Brasileira de Inclusão.

 

Os defensores da presença do acompanhante especializado argumentam que esse é um direito já adquirido por lei federal e que, para alguns estudantes autistas, ele é essencial para garantir a mediação de atividades e comunicações. 

 

Por outro lado, críticos veem nesse profissional, sobretudo se sua formação estiver alinhada às práticas comportamentais, como proposto pelo parecer original, a certeza de que se trataria de uma manobra de interessados em levar a terapia para dentro da sala de aula.

 

A diferenciação entre o profissional de apoio escolar e o acompanhante especializado para pessoas autistas está sendo debatida pelo Ministério da Educação em outro fórum, a partir de um relatório de um grupo de trabalho que propôs unificar as duas funções — iniciativa criticada por parte da comunidade autista como um retrocesso. O tema foi objeto de um painel de especialistas, em outubro de 2024, chamado pelo MEC.

 

Os críticos do parecer também argumentam que, durante os dois governos que precederam a atual gestão federal não houve investimento na política chave das salas de recursos multifuncionais e dos profissionais nela envolvidos, de modo que as lacunas na oferta de apoios e dos serviços de AEE não se devem a um problema na estrutura em si da política, mas à falta de investimentos.

 

 

O novo parecer 50

 

Após a aprovação do parecer 50 original pelo CNE, seus defensores começaram uma articulação pela sua homologação pelo ministro Camilo Santana, com visitas a gabinetes de autoridades e pressão nas redes sociais. Por outro lado, os críticos do parecer reclamaram de pontos centrais do texto e de pouca participação no processo de construção do parecer — o que é rebatido pelos integrantes do grupo que redigiu o parecer original. 

 

Dessa forma, o parecer voltou para uma ampla rodada de consultas à população, foi reescrito — perdeu muita da ênfase que havia sido dada às práticas baseadas em evidência mais usadas pelo campo da saúde nas terapias com autistas, mas manteve o foco no PEI. 

 

O texto final é consideravelmente mais enxuto que o original e incorporou ao próprio parecer o que originalmente era um relatório técnico científico à parte, anexado ao parecer. O documento faz um longo repassado sobre os direitos dos estudantes com autismo e outras deficiências previstos nas normativas brasileiras, trata sobre a prioridade e a garantia da matrícula de autistas nas escolas, sobre a articulação entre o professor regente e o professor do AEE, e aborda o projeto político pedagógico como forma de garantir a inclusão efetiva de alunos autistas não só nas salas de recursos multifuncionais mas também nas salas de aulas regulares.

 

Ele não faz nenhuma menção às práticas baseadas em evidência, e fala apenas brevemente sobre a existência do acompanhante especializado e sobre quando deve ser ofertado. O texto tampouco fala sobre a formação desse profissional, e remete à atual discussão do MEC (objeto de um painel em outubro passado) para definir o perfil dessa capacitação.

 

Sua grande inovação às normativas federais é a manutenção do PEI, definido como um dos instrumentos de natureza pedagógica que compõem o projeto político pedagógico, ao lado do plano do AEE. Determina ainda que o PEI deve conter "1) um plano de acessibilização curricular, considerando as atividades desenvolvidas na sala de recursos multifuncionais e a articulação com o professor regente e demais profissionais da unidade escolar, nos diferentes espaços; e 2) medidas individualizadas de acesso ao currículo para os estudantes autistas”. O plano do AEE e o PEI, segue o parecer, "devem orientar o trabalho a ser desenvolvido na sala de aula comum, no âmbito do AEE, nas atividades colaborativas da unidade educacional e nas demandas de articulação intersetorial”.

 

A segunda versão do parecer 50 foi homologado pelo ministro da Educação uma semana depois de o documento ter sido aprovado pelo CNE, em novembro de 2024. Consultado, o MEC afirmou que o parecer homologado "expressa a posição do Ministério da Educação e está alinhado com a Política de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI)”.

 

 

O impacto do parecer 50

Como um parecer do Conselho Nacional de Educação homologado pelo ministro da Educação, o parecer 50 é uma norma educacional que vale para as redes privada e pública de ensino. O parecer tem caráter orientativo, e não estabelece determinações expressas

 

A indicação do MEC, no entanto, é que as orientações serão incorporadas em normativas mais específicas.

 

Procurado sobre os próximos passos a partir da homologação, o Ministério da Educação informou que "a discussão que resultou na homologação do parecer 50, em sua versão final, impulsionou diversas iniciativas destinadas a atender as demandas ali indicadas. Entre essas, destacam-se a formalização do Plano Educacional Individualizado (PEI), sua compatibilização com o Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE) e o estudo de caso, uma demanda das famílias e das redes de ensino que já utilizavam esse instrumental”.

 

Isso significa, continua o MEC, que "estão em desenvolvimento publicações pedagógicas que devem incorporar as novas orientações, incluindo o PEI entre os documentos pedagógicos, bem como se estuda a publicação de normativa sobre a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva que incorpora desafios atuais, mas respeita as diretrizes da educação inclusiva. Quando sair, essa normativa também deve incorporar o PEI como um dos documentos pedagógicos advindos do estudo de caso”.

Como acompanhar: pautas possíveis

- Como está o investimento na política da educação inclusiva? Segundo o MEC, "até o momento, mais de 20 mil novas escolas aderiram ao programa PDDE-salas de recursos multifuncionais, voltado à aquisição de equipamentos e materiais pedagógicos para a realização do Atendimento Educacional Especializado (AEE). A meta é alcançar 38 mil novas escolas até 2026, ampliando a oferta de salas de recursos multifuncionais de 36% para 72% das escolas. Em 2023, foram investidos R$ 237 milhões no programa, enquanto em 2024 o investimento foi de R$ 201 milhões”.

- O Instituto Rodrigo Mendes tem um Painel de Indicadores da Educação Especial, onde é possível acompanhar o avanço das matrículas de estudantes com deficiência e com acesso ao AEE.

- O MEC promete editar novas publicações sobre o tema, incorporando as orientações expressas no parecer 50, incluindo o PEI como um dos documentos pedagógicos.

- Há diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional e nos legislativos estaduais e municipais estabelecendo o PEI como uma obrigação das redes de ensino. É possível acompanhar tais iniciativas pelos sites dos órgãos legislativos e debater o conflito entre as políticas locais, que eventualmente podem seguir a linha do parecer original, e a política que acabou consolidada no parecer final homologado pelo ministro da Educação.

- Pela primeira vez, o Censo estimou o número de autistas. Esse dado ainda não foi divulgado pelo IBGE, o que deve ocorrer nos próximos meses. Essa informação vai dar maior concretude à necessidade de alinhamento das políticas setoriais voltadas a esse público.

 

 

Glossário


Acompanhante especializado - Profissional previsto na Lei Berenice Piana, de 2012, como direito para pessoas com TEA. "Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular (…) terá direito a acompanhante especializado.” Um decreto posterior, de 2014, detalha que "caso seja comprovada a necessidade de apoio às atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais, a instituição de ensino em que a pessoa com transtorno do espectro autista ou com outra deficiência estiver matriculada disponibilizará acompanhante especializado no contexto escolar”. Não há regulamentação sobre a formação deste profissional.


Autismo - É um transtorno do neurodesenvolvimento de base eminentemente genética e hereditária (veja box acima).


AEE - O Atendimento Educacional Especializado foi estruturado a partir de 2008, com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI), e visa três públicos: estudantes com deficiência, transtorno global do desenvolvimento (categoria que inclui os autistas) ou altas habilidades matriculados em salas regulares. Está estruturado ao redor das salas de recursos multifuncionais da própria escola, de outra escola ou em centros conveniados, funcionando como serviço complementar e/ou suplementar, e sendo realizado prioritariamente no contraturno. Segundo o MEC, o AEE "tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagogicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades especificas”.


CAA - A Comunicação Aumentativa e Alternativa é um conjunto "ferramentas e estratégias utilizadas para resolver desafios cotidianos de comunicação de pessoas que apresentam algum tipo de comprometimento da linguagem oral, na produção de sentidos e na interação”, de acordo com a Isaac Brasil (o braço nacional da International Society for Augmentative and Alternative Communication). Essas ferramentas podem ser de baixa tecnologia (pranchas com imagens e letras usadas para comunicar) ou de alta tecnologia (como tablets com aplicativos que trazem as mesmas imagens e permitem a formulação de frases complexas).


Capacitismo - Trata-se de preconceito e discriminação contra pessoas com deficiência.


Neurodiversidade - Surgiu como conceito nos anos 1990 para discutir o estigma ligado a pessoas autistas, com TDAH e transtornos do aprendizado, e evoluiu para se tornar um movimento global, puxado por uma mulher autista australiana, Judy Singer, que reafirma a diversidade e as potencialidades de cérebros que funcionam de maneiras diferentes do padrão (daí os termos comumente usados neurotípicos e neuroatípicos).


PAEE - Segundo o parecer 50 final, o Plano do Atendimento Educacional Especializado "é um documento obrigatório que deve ser continuamente atualizado e conter: 1) registro do estudo de caso; 2) definição de materiais e recursos para eliminar ou minimizar as barreiras no contexto educacional; 3) avaliação da necessidade e disponibilização de recursos de tecnologia assistiva e comunicação aumentativa e alternativa; 4) avaliação da necessidade de oferta de profissionais de apoio escolar, intérpretes de Libras e guias-intérpretes; e 5) demandas para a rede de proteção social e articulação intersetorial”.


PEI - O parecer 50 original definia o Plano Educacional Individualizado como um "instrumento que organiza o plano educacional do estudante, com todas as adaptações que se façam necessárias, medidas de apoio individualizadas e efetivas, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico” e cuja implementação ocorre em todos os ambientes da escola. Trata-se de um documento construído pela escola, pela família e pelos profissionais que atendem o estudante, em que estão descritas as habilidades e os interesse do aluno, os objetivos a serem alcançados na escola, e as adaptações e suportes necessários pensando no currículo escolar. Também pode ser chamado de PDI (Plano de Desenvolvimento Individual). De acordo com o parecer 50 final, o PEI "deve conter 1) um plano de acessibilização curricular, considerando as atividades desenvolvidas na sala de recursos multifuncionais e a articulação com o professor regente e demais profissionais da unidade escolar, nos diferentes espaços; e 2) medidas individualizadas de acesso ao currículo para os estudantes autistas”.


Profissional de apoio escolar - A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, define esse profissional como a "pessoa que exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária, em todos os níveis e modalidades de ensino, em instituições públicas e privadas, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas”.


TEA - O Transtorno do Espectro Autista foi estabelecido como um diagnóstico, em 2013, pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que agrupou em um só espectro condições que antes eram diagnósticos separados (como a síndrome de Asperger).

 

 
Baixe aqui a versão em pdf deste material.
 
Tem mais sugestões e indicações sobre este tema? Escreva para contato@jeduca.org.br.
 
 

#Parecer50 #Miniguia #EducaçãoEspecial #ConselhoNacionaldeEducação #CNE #Autismo

PARCEIROS FINANCIADORES
PARCEIROS INSTITUCIONAIS
ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO