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Educação Especial: entenda o cenário e possíveis desdobramentos em 2024

Dados do Censo Escolar 2023, debate sobre parecer do CNE para pessoas com TEA e investimentos do governo federal são pontos que compõem o cenário da cobertura sobre a modalidade neste ano

26/03/2024
Isabella Siqueira

A educação especial é um tema que pode figurar na cobertura de educação em 2024. Entre os  motivos estão os debates e possíveis desdobramentos de medidas anunciadas pelo governo federal no ano passado, como o investimento de R$ 3 bilhões para fortalecer a PNEEPEI (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva), instituída em 2008 e que traça os fundamentos para o funcionamento da modalidade.

 

O Plano de Afirmação e Fortalecimento da PNEEPEI anunciado pelo governo federal será executado pelo MEC (Ministério da Educação) e prevê ações nas seguintes frentes: investimento em formação de professores, infraestrutura, transporte e recursos de tecnologia e pedagógicos.

 

O objetivo é garantir o acesso, permanência, participação e aprendizagem dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e superdotação/altas habilidades - conforme previsto na Lei Brasileira da Inclusão.  Por isso, a meta do governo é chegar ao final de 2026 com 2 milhões de estudantes da educação especial matriculados na escola comum - atualmente, são cerca de 1,5 milhão, de acordo com o Censo Escolar 2023 (veja gráficos 57, 58 e 59 da apresentação do Inep). 

 

Outros objetivos são garantir 169 mil matrículas na educação infantil e ampliar os recursos financeiros para dobrar o número de escolas equipadas com SRM (Salas de Recursos Multifuncionais), com a intenção de potencializar o aprendizado desses estudantes. Porém, até o momento, o governo ainda não anunciou como pretende colocar as propostas em prática, por isso, vale a pena ficar atento e acompanhar.

 

Aumento das matrículas e Parecer 50/2023 do CNE

Outros pontos que trazem visibilidade ao tema é o aumento do número de estudantes da educação especial nos últimos anos, constatado no Censo Escolar 2023, e o debate acerca do Parecer 50/2023 do CNE (Conselho Nacional de Educação), sobre o atendimento dos estudantes com TEA (Transtorno do Espectro Autista) aprovado por unanimidade em dezembro.

 

O documento, intitulado NORTEAR: Orientações para o Atendimento Educacional ao Estudante com Transtorno do Espectro Autista – TEA, inclui um relatório técnico e foi elaborado por um grupo de trabalho ligado à Comissão Bicameral de Educação Especial do CNE, diante do que o texto aponta como “demanda crescente de indagações e angústias geradas por um número cada vez maior de estudantes autistas matriculados nas escolas públicas e privadas”.

 

O parecer, que está nas mãos do ministro Camilo Santana (Educação) aguardando homologação, estabelece orientações para as escolas e redes de ensino. Não existe um prazo para que a decisão quanto à homologação seja tomada.

 

A polêmica em torno do documento se dá por conta de visões diferentes sobre como devem ser organizadas as atividades pedagógicas para os estudantes com TEA (leia mais abaixo). 

 

Vale lembrar que a educação especial também foi tema de polêmica por causa do Decreto 10.502/2020, no contexto do governo Bolsonaro, para criar uma nova política de educação especial que incentivava a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em escolas especiais. O decreto foi suspenso pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e revogado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

Com relação às matrículas, o Censo aponta que o número de estudantes da educação especial vem aumentando, chegando a 1,8 milhão em 2023 (somando escola comum e escola especial) - um avanço de 41,6% em relação a 2019. 

 

O Censo também mostra aumento das matrículas desses estudantes nas escolas comuns, enquanto as matrículas nas escolas especiais tendem a permanecer estáveis, como mostra a apresentação do Inep, citada acima.

 

Um dado que chama a atenção no Censo Escolar 2023 e que ajuda a entender a polêmica sobre Parecer 50/2023 é o ritmo de crescimento das matrículas dos estudantes com TEA, que estão crescendo mais do que, por exemplo, as matrículas dos estudantes com deficiência intelectual -  que está no topo da tabela de matrículas por tipo de deficiência (veja gráfico 60 da apresentação do Inep, citada acima). 

 

De 2020 a 2023, as matrículas de estudantes com TEA aumentaram 2,57 vezes, passando de 246,7 mil para 636,2 mil no período  (o segundo maior grupo da educação especial). Os estudantes com deficiência intelectual ainda são o maior grupo (952,9 mil matrículas), mas o ritmo de crescimento das matrículas é menor (um aumento de 9% desde 2020, quando havia 870,4 mil matrículas).

 

Os dados apontam ainda um crescimento no número de matrículas de estudantes com deficiência física, deficiência múltipla, baixa visão, deficiência auditiva, altas habilidades/superdotação, cegueira e surdocegueira. 

 

Os dados do Censo Escolar 2023 estão disponíveis aqui.Os dados do Censo Escolar 2020  estão disponíveis aqui.

 

Outro aspecto que precisa se levado em conta é o aumento do número de diagnósticos de crianças com autismo em função da ampliação dos critérios de avaliação. Matéria publicada no portal Lunetas mostra que, de acordo com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), em 2020 1 a cada 36 crianças de 8 anos foram diagnosticadas com autismo. Em 2000, era 1 a cada 150.

 

O debate em torno do Parecer 50/2023

O  Parecer 50/2023 do CNE deu início a um debate com argumentos contra e a favor do documento, em função das mudanças que ele pode causar no ambiente educacional. 

 

Se for homologado, ele passa a ser efetivo e estabelece orientações para as redes de ensino sobre o atendimento dos estudantes com TEA. Cabe aos conselhos estaduais e municipais de educação estabelecer orientações específicas.

 

A Conae 2024 aprovou uma moção da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva contra o relatório. O Leped (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), também apresentou uma carta aberta contra o parecer no final de janeiro. 

 

Em fevereiro, a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas apresentou nota técnica que analisa o texto e critica determinados pontos. Na visão do documento, o parecer adota uma visão de "tutela das pessoas autistas" (p. 5).  

 

O debate ganhou força nas redes sociais, por isso os argumentos listados a seguir foram apresentados em eventos online, entre eles um vídeo de apresentação do parecer com a participação de Suely Menezes, relatora do documento no CNE, Lucelmo Lacerda, professor de ABA (Applied Behavior Analysis, ou Análise do Comportamento Aplicada, em português) e Flávia Marçal, professora da UFRA (Universidade Federal Rural da Amazônia) - ambos integrantes do grupo de trabalho que elaborou o documento.

 

Outra fonte usada para mapear o debate foi uma live do Instituto Cáue com Nathália Meneghine, professora da rede municipal de Juiz de Fora (MG), Virginia Andrade, que foi professora da rede municipal de Belo Horizonte (MG) por 31 anos, e José Eduardo Lanuti, professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). 

 

A polêmica 

Um argumento contrário é o de que não houve ampla discussão com a sociedade na elaboração do documento, principalmente com professores e gestores escolares, e que falta de participação de pessoas com TEA. Porém, em vídeo, Flávia Marçal frisa que, por meio de reuniões itinerantes do CNE, houve a oitiva da sociedade.

 

Além disso, gestores, professores e organizações da sociedade civil questionam conceitos adotados no relatório e alertam para possíveis mudanças no ambiente escolar, caso venha a ser homologado - por exemplo, uma possível participação mais ativa de especialistas de fora da escola na definição do conteúdo pedagógico ou o risco de se criar de um currículo específico para cada estudante com TEA, diferente do restante da turma. 

 

Em contrapartida, os defensores do parecer alegam que ele define estratégias e processos baseados em evidências científicas. No documento são citadas evidências principalmente do campo da psicologia comportamental, que fundamenta metodologias como o ABA (Análise do Comportamento Aplicada), adotada com pessoas com TEA.

 

O parecer cita o PEI (Plano Educacional Individualizado) como instrumento de diagnóstico e ponto de partida para a definição do trabalho pedagógico. A proposta é que, quando o estudante ingressa na escola, um plano seja elaborado para orientar o trabalho pedagógico com o estudante. 

 

Já os críticos ao parecer alegam que a legislação educacional não prevê o PEI e afirmam que o instrumento para definir as estratégias pedagógicas é o PAEE (Plano de Atendimento Educacional Especializado).  Eles também veem no PEI um instrumento vinculado à área da saúde e não à educação. Por isso, afirmam que os pressupostos e as evidências científicas nele indicadas não necessariamente se aplicam ao ambiente escolar. 

 

Outra crítica é que o parecer pode dar margem à entrada na escola de agentes terapêuticos, ao sugerir que estes seriam uma referência para a elaboração do PEI, retirando o papel central do professor nesse processo.

 

Em contrapartida, os atores a favor do relatório afirmam que essa seria uma interpretação errônea do texto, que não determina a presença de profissionais da saúde dentro da escola. 

 

A seguir, alguns dos principais marcos legais relacionados à educação especial e inclusiva no Brasil

 

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU 

Em 2006, a Assembléia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Protocolo Facultativo da Convenção. Em 2009, ambos os documentos foram ratificados no Brasil, passando a ter equivalência constitucional. 

 

Uma novidade da Convenção foi introduzir o modelo social de deficiência, ou seja, a ideia  que a deficiência resulta da interação entre as pessoas e as barreiras que existem no ambiente. O texto reconhece a deficiência como um conceito em evolução e deixa de entendê-la como uma característica inerente ao indivíduo, como algo que constitui sua identidade.

 

Este é um dos conceitos que serve de base para críticas ao parecer, pois entendem que ele remete ao modelo médico da deficiência, que não condiz com a legislação brasileira (pautada pelo modelo social de deficiência). Contudo, no parecer, os autores defendem que a proposta descrita está alinhada com a educação inclusiva e em conformidade com a legislação brasileira.

 

Em linhas gerais, é possível dizer que o modelo médico entende a deficiência como uma característica intrínseca da pessoa, gerando desvantagens na vida social. E assume que, por causa da deficiência (seja ela física, intelectual, sensorial etc.) a pessoa fica impedida ou limitada para  exercer papéis e funções na sociedade. 

 

Por sua vez, o modelo social busca identificar barreiras (físicas, de atitude, comportamento, linguagem etc.) existentes no ambiente (ruas, escolas e outros espaços sociais) que podem estar impedindo a pessoa viver plenamente na sociedade, conforme suas capacidades e potencialidades. Saiba mais sobre modelo social e modelo médico de deficiência.

 

Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPNEI)

Instituída em 2008, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva é um marco regulatório na garantia do acesso, participação, aprendizagem de alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades na escola comum. 

 

Segundo a política, a educação especial, que antes era tida como substituta do ensino regular, adquire caráter complementar, passando a integrar a proposta pedagógica das escolas. 

 

A política contribuiu para o aumento das matrículas de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas escolas comuns. Veja os dados na apresentação do Censo Escolar 2023 (Gráfico 56).

 

Atendimento Educacional Especializado (AEE)

Com a promulgação do , os sistemas de ensino público e privado passaram a ser obrigados a oferecer o AEE (Atendimento Educacional Especializado), que consiste em um serviço de apoio complementar/ ou suplementar à escolarização para estudantes com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

 

Conforme a resolução nº 4/2009 a função do AEE é identificar as necessidades dos estudantes e fornecer recursos pedagógicos para eliminar as barreiras possibilitando sua  plena participação nas atividades escolares. 

 

Apesar de ser oferecido prioritariamente no contraturno das aulas e em salas de recursos multifuncionais, o AEE pode ser ofertado em toda escola e também fora dela (geralmente em instituições conveniadas com as secretarias de educação estaduais ou municipais).

 

Segundo a resolução, deve ser elaborado um plano de AEE para cada estudante público-alvo da educação especial. O documento também prevê uma articulação entre os professores responsáveis pelo AEE, professores da sala de aula, famílias dos estudantes e  serviços setoriais de saúde e assistência social, entre outros.

 

Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista

A política, instituída pela lei 12.764/2012, é um dos marcos regulatórios mais importantes referentes ao TEA (Transtorno do Espectro Autista). Ela garante a essas pessoas os mesmos direitos das pessoas com deficiência. 

 

Lei Brasileira da Inclusão das Pessoas com Deficiência (LBI)

A lei nº 13.146/2015, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, descreve os direitos fundamentais de pessoas com deficiência tendo em vista a promoção da inclusão social e cidadania. 

 

Na área de educação, por exemplo, a LBI estabelece multa ou prisão para gestores de escolas que negarem ou dificultarem matrícula de estudantes com deficiência, proíbe a cobrança de valores adicionais para pessoas com deficiência. A lei também prevê a oferta de profissional de apoio, quando necessário.



Pontos de atenção

  • Na cobertura, vale acompanhar as medidas anunciadas pelo Governo Federal em 2023 para fortalecer a PNEEPEI. Existe uma previsão para implementação das ações? Como serão recebidas pelas escolas?

  

  • As reportagens podem investigar como está a oferta de AEE nas escolas públicas e privadas, que também são obrigadas a oferecer o serviço aos estudantes público-alvo da educação especial.

  

  • Apesar de definir diretrizes específicas para o atendimento de estudantes com TEA, caso seja homologado, é possível que as orientações repercutam nas práticas escolares para estudantes com outros tipos de deficiência, na medida em que pode instituir novas práticas para o AEE (Atendimento Educacional Especializado). Vale ficar atento a isso.

  

  • Um ponto que vale investigação é resgatar as ações e financiamento voltados para a formação de professores, equipamentos e recursos de acessibilidade - essenciais para o bom funcionamento do AEE. Como foram esses processos nos governos anteriores? A proposta do MEC de fortalecer é PNEEPEI é capaz de suprir as demandas e necessidades das escolas e redes de ensino?

  

  • As reportagens podem trazer experiências de sucesso de educação inclusiva nas escolas, além de ajudar a compreender os desafios para que ela seja efetiva.

 

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